No Limite do Silêncio: A História de um Casamento que Quase Me Destruiu
— Não é possível, Leonor! Sempre a mesma coisa! — gritou o Miguel, atirando as chaves em cima da mesa da cozinha. O barulho ecoou pela casa, misturando-se ao cheiro do arroz queimado que eu tentava salvar do fundo da panela. Senti o peito apertar, como se cada palavra dele fosse uma pedra a mais no muro que nos separava.
Fiquei ali, parada, com a colher de pau na mão, olhando para o chão. O Miguel continuava a falar, mas já não ouvia as palavras. Só sentia o peso delas. “Sempre a mesma coisa.” Era isso que eu era para ele? Uma rotina falhada, um erro repetido todos os dias?
Lembro-me de quando nos conhecemos, há quase vinte anos, numa festa de São João em Braga. Ele era divertido, cheio de sonhos e promessas. Eu acreditava em cada uma delas. Achava que juntos íamos construir uma vida diferente daquela dos meus pais — marcada por silêncios e mágoas não ditas. Mas, com o tempo, percebi que estava a repetir a história da minha mãe: calada, submissa, sempre a tentar evitar discussões.
— Leonor, estás a ouvir-me? — A voz dele cortou os meus pensamentos.
— Estou — respondi baixo, sem coragem de o encarar.
— Não parece! — Ele bufou e saiu da cozinha, deixando-me sozinha com o arroz queimado e as lágrimas que teimavam em cair.
Os nossos filhos, a Inês e o Tomás, estavam no quarto. Sabiam que era melhor não aparecerem quando o pai chegava assim. O silêncio deles era mais um lembrete do ambiente pesado que pairava sobre nós. Senti-me culpada por não conseguir protegê-los deste clima. Será que estavam a aprender que o amor era isto? Gritos, portas a bater e silêncios dolorosos?
Naquela noite, depois de todos se deitarem, sentei-me na varanda com uma manta sobre os ombros. O frio da noite de abril entrava-me pelos ossos, mas era melhor do que o frio dentro de casa. Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem à minha irmã, Sofia: “Preciso de falar contigo. Amanhã podes vir cá?”
A Sofia sempre foi o meu oposto: decidida, destemida, nunca deixou ninguém calá-la. Quando chegou no dia seguinte, trouxe aquele sorriso cúmplice de quem sabe mais do que diz.
— Então, mana? — perguntou ela, sentando-se à minha frente com um café quente nas mãos.
— Não aguento mais — confessei, sentindo a voz embargar. — Sinto-me invisível aqui dentro. Tudo o que faço é errado. O Miguel já nem olha para mim… Só grita ou ignora.
A Sofia pousou a chávena e segurou-me as mãos.
— Leonor, tu não és invisível. És só demasiado boa a esconder-te. Tens de te pôr em primeiro lugar uma vez na vida.
As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Mas como é que se faz isso quando toda a tua vida foi dedicada aos outros? Quando até os teus filhos dependem do teu silêncio para terem alguma paz?
O Miguel começou a chegar cada vez mais tarde. Dizia que era trabalho, mas eu sabia que era fuga. Uma noite, ouvi-o ao telefone na varanda:
— Não posso continuar assim… Ela não percebe nada… — sussurrava ele.
O coração apertou-se-me no peito. Quem era aquela com quem ele falava? Uma colega? Uma amiga? Ou algo mais? A dúvida corroía-me por dentro.
No dia seguinte, tentei confrontá-lo:
— Miguel, precisamos de conversar.
Ele nem me olhou nos olhos.
— Agora não posso. Estou atrasado.
E saiu porta fora.
A Inês começou a ter pesadelos. Acordava a chorar no meio da noite e só se acalmava quando eu me deitava ao lado dela. O Tomás fechou-se ainda mais no mundo dos videojogos. A nossa casa era um campo minado de emoções por explodir.
Uma tarde, depois de deixar as crianças na escola, fui ao café da Dona Amélia — aquela senhora simpática do bairro que sempre tinha um conselho pronto para dar.
— Leonor, tu tens de pensar em ti — disse ela enquanto me servia um bolo de arroz. — Se não cuidares de ti agora, ninguém vai cuidar.
Essas palavras foram o empurrão final. Voltei para casa e olhei-me ao espelho como há muito não fazia. Vi uma mulher cansada, com olheiras fundas e olhos tristes. Mas também vi ali uma centelha — pequena, quase apagada — de quem eu já fui um dia.
Nessa noite esperei pelo Miguel acordada na sala.
— Precisamos mesmo de falar — disse-lhe assim que entrou.
Ele revirou os olhos.
— Outra vez?
— Sim, outra vez! Porque eu não sou invisível! Eu existo! E estou farta deste silêncio! — gritei pela primeira vez em anos.
Ele ficou parado à porta, surpreendido com a minha reação.
— O que é que queres afinal?
— Quero respeito! Quero ser ouvida! Quero saber se ainda existe algum amor aqui ou se estamos só a fingir para os miúdos!
O Miguel sentou-se no sofá e passou as mãos pela cara.
— Eu… eu já não sei — murmurou ele. — Sinto-me perdido também.
Chorámos os dois naquela noite. Pela primeira vez em muito tempo falámos sem gritos nem acusações. Contou-me sobre o medo de falhar como marido e pai; eu contei-lhe sobre o vazio que sentia há anos.
Não foi fácil depois disso. Fomos juntos à psicóloga do centro de saúde. Tivemos conversas dolorosas sobre tudo o que tínhamos deixado acumular entre nós: mágoas antigas, expectativas frustradas, sonhos adiados.
Houve dias em que pensei em desistir. Em fazer as malas e ir embora com as crianças para casa da Sofia. Mas algo dentro de mim dizia para tentar mais uma vez — por mim e pelos meus filhos.
Com o tempo, aprendemos a ouvir-nos sem julgar. A Inês começou a dormir melhor; o Tomás voltou a sorrir à mesa do jantar. O Miguel esforçou-se por estar mais presente; eu comecei a fazer pequenas coisas só para mim: caminhar no parque ao fim da tarde, ler um livro sem culpa.
Ainda temos dias maus. Ainda discutimos por coisas pequenas. Mas agora sei que não preciso sacrificar quem sou para manter uma paz falsa em casa.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem assim caladas? Quantas Leonores existem por aí à espera de se reencontrarem? Será que vale sempre a pena lutar ou há momentos em que é preciso partir para nos salvarmos?