O Convidado Inesperado: Quando o Meu Sogro Mudou Tudo

— Outra vez, Ana? Ele vem outra vez este fim de semana? — perguntei, tentando conter a irritação na voz, enquanto via a minha mulher arrumar a sala com aquele cuidado especial que só tinha quando o pai vinha.

Ela não me olhou nos olhos. — É só mais um jantar, Dário. Ele sente-se sozinho desde que a mãe morreu. Não posso dizer-lhe que não venha.

Suspirei, sentindo o peso do tecto sobre mim. Desde que nos mudámos para Lisboa, há seis meses, tudo parecia ter mudado. Tínhamos deixado o Porto para trás, os amigos, a rotina, até o cheiro do mar. Viemos à procura de um recomeço, mas o que encontrámos foi uma rotina de silêncios e visitas inesperadas do senhor António, o pai da Ana.

No início, achei que era só uma fase. Ele vinha, contava as mesmas histórias de sempre — de quando era jovem, das dificuldades do pós-25 de Abril, dos tempos em que Lisboa era outra — e eu sorria, fingindo interesse. Mas com o tempo, as visitas tornaram-se cada vez mais frequentes. Todos os fins de semana, quase como um ritual. E cada vez que ele entrava pela porta, sentia-me mais um estranho na minha própria casa.

Naquela sexta-feira, enquanto Ana preparava o jantar preferido do pai — bacalhau à Brás — tentei falar com ela.

— Ana, precisamos de conversar. Isto não pode continuar assim. Sinto-me… sinto-me excluído.

Ela parou por um segundo, mas logo voltou ao corte das batatas. — Não é altura para isto agora, Dário. Ele chega daqui a pouco.

Fiquei ali parado, sem saber o que fazer. O cheiro do bacalhau enchia a casa, misturado com a tensão no ar. Quando o senhor António chegou, trouxe consigo aquele sorriso largo e a voz alta que enchia a sala.

— Então, genro! Como vai esse trabalho novo? Já te adaptaste à vida lisboeta?

Sorri forçadamente. — Vou tentando, senhor António.

Ele sentou-se no sofá como se fosse dono da casa e começou logo a falar das obras na Baixa, das saudades do tempo em que tudo era diferente. Ana ria-se das piadas dele, servia-lhe vinho e olhava para mim apenas de relance. Eu sentia-me cada vez mais pequeno.

O jantar foi uma sucessão de histórias repetidas e silêncios constrangedores entre mim e Ana. Quando finalmente ele se foi embora, já passava da meia-noite. Fui para a varanda fumar um cigarro, coisa que já nem fazia antes de nos mudarmos.

Ana veio ter comigo.

— Não podes continuar assim, Dário. Ele é meu pai. Preciso dele agora.

— E eu? — perguntei, quase num sussurro. — Precisas de mim?

Ela não respondeu. Ficou ali ao meu lado, a olhar para as luzes da cidade.

Os dias passaram e as visitas continuaram. Comecei a evitar estar em casa aos fins de semana. Ia dar longos passeios pelo bairro de Alfama ou sentava-me num café qualquer a ver as pessoas passar. Sentia-me invisível.

Uma noite, depois de mais uma discussão silenciosa à mesa do jantar — desta vez porque eu tinha esquecido de comprar o vinho preferido do senhor António — perdi a cabeça.

— Isto não é vida! — gritei. — Não posso continuar a viver assim! Sinto que perdi tudo o que tínhamos!

Ana chorou pela primeira vez desde que nos mudámos. Chorou baixinho, como quem não quer incomodar ninguém.

— Não sei o que fazer, Dário. Sinto-me presa entre ti e ele. Desde que a minha mãe morreu… ele é tudo o que me resta da família.

Abracei-a, mas senti que havia um muro entre nós.

As semanas seguintes foram um arrastar de dias cinzentos. No trabalho, mal conseguia concentrar-me. Os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu respondia sempre com um sorriso forçado.

Numa dessas tardes, recebi uma mensagem do meu irmão mais novo: “Vens ao Porto no fim de semana? A mãe faz anos.” Hesitei antes de responder. Já nem sabia se podia sair sem avisar o senhor António.

Quando contei à Ana que queria ir ao Porto sozinho, ela ficou em silêncio durante minutos intermináveis.

— Faz como quiseres — disse finalmente. — Eu fico cá com o meu pai.

A viagem ao Porto foi um misto de alívio e culpa. Revi os amigos antigos, abracei a minha mãe e senti pela primeira vez em meses que ainda havia um lugar onde pertencia.

No regresso a Lisboa, encontrei Ana sentada no sofá com os olhos vermelhos.

— O meu pai perguntou por ti — disse ela sem me olhar. — Disse que devias ter ficado cá para ajudar com umas coisas em casa.

Sentei-me ao lado dela e tomei-lhe as mãos nas minhas.

— Ana… precisamos mesmo de falar sobre isto. Não podemos continuar assim. Eu amo-te, mas sinto que estou a perder-te para o teu pai.

Ela olhou finalmente para mim e vi nos olhos dela uma tristeza profunda.

— Tenho medo de ficar sozinha — confessou. — Depois da morte da minha mãe… só ele me resta. E tu também… mas parece que estamos cada vez mais longe um do outro.

Ficámos ali em silêncio durante muito tempo. Pela primeira vez em meses, senti que estávamos juntos na dor.

Na semana seguinte tentei aproximar-me do senhor António. Convidei-o para irmos juntos ao futebol — Benfica contra Sporting — mas ele recusou com um sorriso paternalista.

— O futebol não é para mim, rapaz. Prefiro ficar aqui com a Ana.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Era como se ele quisesse ocupar todos os espaços da nossa vida.

Nessa noite sonhei com o Porto: as ruas estreitas, o cheiro da chuva nas pedras antigas, os risos dos meus amigos no café da esquina. Acordei com saudades de quem eu era antes de Lisboa.

Os meses passaram e nada mudou realmente. O senhor António continuava a vir todos os fins de semana; eu continuava a sentir-me um estranho; Ana continuava presa entre nós dois.

Até ao dia em que recebi uma proposta de trabalho no estrangeiro: Bruxelas, três anos garantidos, salário muito acima do que ganhava aqui. Mostrei a proposta à Ana com as mãos a tremer.

— E se começássemos mesmo de novo? Só nós dois? Longe daqui… longe dele?

Ela ficou em silêncio durante muito tempo antes de responder:

— Não sei se consigo deixar o meu pai agora…

Foi aí que percebi: talvez nunca conseguíssemos voltar ao que éramos antes. Talvez Lisboa tivesse mudado tudo para sempre.

Hoje escrevo estas linhas sentado num café perto do Terreiro do Paço, enquanto vejo turistas tirarem fotografias ao Tejo e penso em tudo o que perdi e ganhei nestes meses.

Será possível recomeçar quando o passado insiste em sentar-se à nossa mesa todos os fins de semana? Ou será que há laços familiares tão fortes que nenhum amor consegue romper?