Por que tive de cortar relações com a minha mãe: Uma história de traição, perdão e busca pelo meu próprio valor

— Mariana, não podes continuar a agir assim! — A voz da minha mãe ecoava pela cozinha, carregada de uma raiva fria que me cortava como vidro. Eu estava sentada à mesa, as mãos trémulas a segurar uma chávena de chá já frio. O relógio marcava quase meia-noite, mas nenhuma de nós parecia disposta a ceder.

— Agir como, mãe? A defender-me? A tentar sobreviver depois de tudo o que o Rui me fez? — respondi, sentindo um nó na garganta. O olhar dela desviou-se, fixando-se na janela embaciada pela chuva de novembro.

— O Rui é um bom homem. Tu é que nunca soubeste dar valor ao que tinhas. Sempre foste ingrata, Mariana. — As palavras dela caíram pesadas, como pedras lançadas ao fundo de um poço.

Foi naquele momento que percebi: a minha mãe nunca iria estar do meu lado. Não importava o quanto eu chorasse, o quanto lhe explicasse as noites em claro, os gritos, as portas a bater, as ameaças veladas do Rui. Para ela, eu era sempre a culpada.

Cresci em Almada, filha única de pais trabalhadores — o meu pai era motorista da Carris e a minha mãe costureira. Sempre fomos uma família modesta, mas unida. Ou pelo menos era isso que eu pensava até ao dia em que o meu casamento começou a ruir.

O Rui entrou na minha vida como um furacão. Conhecemo-nos numa festa de amigos comuns, ele era charmoso, divertido e parecia adorar-me. Casámo-nos depressa demais, talvez porque eu queria fugir da casa dos meus pais e da pressão constante da minha mãe para ser “perfeita”. No início, tudo parecia um conto de fadas. Mas os contos de fadas não existem.

Começaram as discussões por coisas pequenas: o jantar que não estava pronto, as contas por pagar, os meus horários no hospital onde trabalhava como enfermeira. O Rui tornava-se cada vez mais agressivo nas palavras e nos gestos. Uma noite, atirou-me o telemóvel contra a parede porque cheguei tarde do turno da noite. Outra vez, empurrou-me contra a porta do quarto porque não queria discutir.

Tentei falar com a minha mãe. Liguei-lhe a chorar, pedi-lhe ajuda. Ela suspirava do outro lado da linha:

— Mariana, todos os casamentos têm altos e baixos. Não sejas dramática.

Senti-me sozinha como nunca antes. O meu pai já tinha morrido há dois anos e eu precisava tanto de colo, de compreensão. Mas ela só sabia repetir que eu devia “aguentar”.

O divórcio foi inevitável. O Rui saiu de casa numa manhã fria de janeiro, deixando-me com as contas por pagar e um vazio impossível de preencher. Quando contei à minha mãe que ia avançar com o processo, ela gritou comigo ao telefone:

— És uma vergonha! O que vão dizer as vizinhas? Não foste capaz de manter o teu casamento!

Durante meses vivi num limbo entre o medo e a culpa. Os amigos afastaram-se — alguns porque eram mais próximos do Rui, outros porque não sabiam lidar com o meu sofrimento. No hospital, os colegas cochichavam quando eu passava no corredor. Senti-me invisível.

A gota de água foi quando descobri que a minha mãe continuava a encontrar-se com o Rui para almoçar aos domingos. Ele ia lá a casa dela, levava-lhe flores e conversavam como se nada tivesse acontecido.

— Mãe, como podes fazer-me isto? — perguntei-lhe num domingo à tarde, depois de ter visto uma foto dos dois no Facebook dela.

Ela encolheu os ombros:

— O Rui sempre foi como um filho para mim. Tu é que mudaste muito, Mariana.

Senti uma raiva tão profunda que tive vontade de partir tudo à minha volta. Mas limitei-me a sair porta fora e nunca mais voltei.

Os meses seguintes foram um deserto emocional. Passei noites sem dormir, chorei até não ter mais lágrimas. Perguntava-me vezes sem conta: “O que fiz eu para merecer isto?” Comecei a fazer terapia — foi a psicóloga quem me disse pela primeira vez que eu tinha direito a pôr limites, mesmo à própria mãe.

No Natal desse ano, recebi uma mensagem dela:

“Espero que estejas feliz com as tuas escolhas. Eu vou passar o Natal com o Rui e os pais dele.”

Senti-me traída como nunca antes. Passei o Natal sozinha em casa, com uma lasanha congelada e um copo de vinho barato. Mas pela primeira vez em muito tempo senti uma estranha paz: estava livre da culpa dela.

A vida foi melhorando devagarinho. Fiz novas amizades no hospital, comecei a correr ao fim da tarde no Parque da Paz e até me inscrevi num curso de cerâmica. Aprendi a gostar da minha própria companhia.

Mas havia dias em que a saudade apertava — não da minha mãe real, mas da mãe que eu sonhava ter tido: alguém que me defendesse, que me abraçasse quando tudo desabava.

Um dia encontrei-a por acaso no mercado de Almada. Ela estava com o Rui. Quando me viu, desviou o olhar e fingiu não me conhecer. Senti um aperto no peito mas continuei em frente.

Hoje olho para trás e percebo que cortar relações com ela foi um ato de amor-próprio. Ainda dói — há feridas que nunca cicatrizam totalmente — mas aprendi que mereço respeito e paz.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres em Portugal vivem presas à culpa imposta pelas próprias mães? Quantas têm coragem de escolher-se a si mesmas?

E tu? Já tiveste de escolher entre a tua paz e a tua família?