Entre as Paredes do Passado: A História de Marta da Rua Camões
— Marta, não te esqueças que esta casa não é só tua! — A voz da tia Lurdes ecoava pelo corredor, fria e cortante como uma lâmina. Eu estava sentada no chão do antigo quarto dos meus pais, rodeada por caixas de fotografias, cartas amareladas e aquele cheiro agridoce de madeira húmida e passado. O sol entrava pela janela, desenhando sombras nas paredes que tantas vezes ouviram risos e discussões, mas naquele dia só havia silêncio e tensão.
— Eu sei, tia. Mas também não é só tua — respondi, tentando controlar o tremor na voz. O meu irmão Pedro já não estava ali para me defender. Desde o acidente na curva da estrada velha, há dois anos, que tudo se desmoronou. Os meus pais tinham partido meses antes, vítimas de um inverno cruel e de um vírus que levou metade da aldeia. Fiquei sozinha com as memórias e com a tia Lurdes, que apareceu logo após o funeral com um molho de chaves e um testamento amarrotado.
A casa na Rua Camões era mais do que paredes e telhado; era o último refúgio da minha infância. Lembro-me das manhãs em que a minha mãe fazia broa de milho na cozinha, do cheiro a café acabado de fazer, das tardes em que eu e o Pedro corríamos pelo quintal atrás das galinhas. Agora, tudo isso parecia distante, como se pertencesse a outra pessoa.
— Não te iludas, Marta. O teu pai devia-me dinheiro. E eu tenho direito à minha parte — insistia a tia, os olhos duros como pedra. — Não vou sair daqui até isto ficar resolvido.
Ouvia-a falar e sentia uma raiva surda crescer dentro de mim. Como podia ela falar assim do meu pai? Como podia reduzir tudo a dívidas e percentagens? Mas não tinha forças para discutir. Nos últimos meses, cada canto da casa parecia pesar toneladas. As paredes guardavam segredos que eu já não sabia se queria desvendar.
Nessa noite, sentei-me à mesa da cozinha com um caderno velho. Escrevi uma carta ao Pedro, como fazia quando era pequena:
“Mano,
A tia Lurdes está a tentar tomar conta de tudo. Diz que o pai lhe devia dinheiro, mas eu lembro-me bem das vezes em que ela veio cá pedir favores e sair com sacos cheios de comida. Sinto-me perdida. Não sei se devo lutar ou desistir. Sinto tanto a tua falta.”
As lágrimas caíam sobre o papel, borrando as palavras. Fechei o caderno e olhei em volta: os azulejos rachados, a mesa com marcas de copos antigos, o relógio parado desde o dia em que a mãe morreu.
No dia seguinte, acordei com barulho no quintal. A tia Lurdes estava a falar alto ao telemóvel:
— Sim, sim, pode vir ver a casa amanhã. Está em bom estado, só precisa de umas obras pequenas… Não, a minha sobrinha não vai criar problemas.
O sangue gelou-me nas veias. Ia vender a casa? Sem sequer me perguntar? Corri para fora:
— O que estás a fazer? — gritei.
Ela virou-se devagar, com um sorriso falso.
— Estou a tratar do que é meu direito. Tu não tens como pagar as dívidas do teu pai. E eu preciso deste dinheiro.
— Esta casa é tudo o que me resta! — berrei, sentindo o desespero apertar-me o peito.
— Tens vinte e sete anos, Marta. Arranja um trabalho decente e vai viver para Lisboa como toda a gente — respondeu ela, virando-me as costas.
Fiquei ali parada, sentindo-me pequena e inútil. O Pedro teria sabido o que fazer. Eu só queria desaparecer.
Nessa tarde fui à vila falar com o senhor António, o advogado da família. Ele ouviu-me em silêncio, os olhos cansados por detrás dos óculos grossos.
— Marta, legalmente a tua tia tem direito à parte dela se houver dívidas por saldar… Mas há formas de negociar. Tens algum dinheiro posto de lado?
Abanei a cabeça. Trabalhava num café há anos, mas mal dava para as contas do mês.
— E se eu ficar sem casa?
O senhor António suspirou:
— Tens amigos? Alguém que te possa ajudar?
Pensei na Joana, minha melhor amiga desde a escola primária. Ela morava em Braga agora, mas sempre dizia que tinha um sofá livre para mim. Mas abandonar aquela casa era como perder os meus pais outra vez.
Voltei para casa ao entardecer. A tia Lurdes estava sentada na sala com uma chávena de chá e um sorriso triunfante.
— Amanhã vêm cá ver a casa às dez — disse ela sem me olhar nos olhos.
Subi para o meu quarto e fechei a porta com força. Sentei-me na cama e olhei para as paredes cobertas de fotografias: eu e o Pedro no rio, os meus pais no casamento deles, todos sorridentes e felizes. Senti uma raiva nova crescer dentro de mim.
Peguei no telemóvel e liguei à Joana:
— Preciso de ti — disse apenas.
Ela chegou na manhã seguinte antes das dez. Entrou na casa como se fosse dela e abraçou-me com força.
— Não vais deixar essa bruxa tirar-te tudo — sussurrou ao meu ouvido.
Quando os compradores chegaram — um casal de Lisboa com ar apressado — eu estava pronta. Mostrei-lhes cada defeito da casa: as infiltrações nas paredes, o telhado que precisava de obras urgentes, o cheiro a mofo no sótão.
A tia Lurdes olhava para mim furiosa enquanto os compradores agradeciam educadamente e saíam apressados.
— O que é que pensas que estás a fazer? — gritou ela quando ficámos sozinhas.
— Estou a proteger aquilo que é meu — respondi, sentindo finalmente alguma força na voz.
Durante semanas foi uma guerra fria: olhares cortantes à mesa do pequeno-almoço, silêncios pesados nos corredores. A tia Lurdes tentava convencer-me a sair; eu agarrava-me à casa como uma náufraga ao último pedaço de madeira.
Um dia encontrei uma carta antiga do meu pai escondida numa gaveta do escritório:
“Marta,
Se algum dia leres isto é porque já não estou aí para te proteger. Sei que a vida nem sempre foi fácil para ti e para o Pedro… Mas quero que saibas que fiz tudo por amor à nossa família. Não deixes ninguém tirar-te aquilo que é teu por direito: as tuas memórias, a tua história. Luta sempre pelo que acreditas.”
Chorei como há muito não chorava. Naquele momento soube que não podia desistir.
Procurei trabalho extra na vila: comecei a dar explicações aos miúdos da escola primária e vendia bolos caseiros ao fim-de-semana no mercado municipal. Cada euro era guardado religiosamente numa lata escondida atrás dos livros do Pedro.
A tia Lurdes percebeu que não ia ser fácil livrar-se de mim. Começou a evitar-me pela casa; passava mais tempo fora do que dentro.
Um dia chegou uma carta do tribunal: ia haver uma audiência para decidir o futuro da casa. Passei noites sem dormir, imaginando todos os cenários possíveis.
No tribunal, sentei-me ao lado do senhor António enquanto a tia Lurdes falava alto sobre dívidas e direitos. Quando chegou a minha vez, mostrei todas as provas do dinheiro emprestado à família dela ao longo dos anos — recibos guardados pela minha mãe — e expliquei ao juiz porque aquela casa era mais do que um bem material para mim.
No final da audiência, o juiz decidiu: eu podia ficar na casa desde que pagasse à minha tia uma quantia justa pela parte dela ao longo dos próximos cinco anos.
Saí do tribunal com as pernas a tremer mas com um sorriso tímido nos lábios. Liguei à Joana:
— Consegui… Vou poder ficar!
Voltei para casa naquela tarde e sentei-me no alpendre com uma chávena de chá quente entre as mãos. Olhei para o céu cinzento sobre os telhados da aldeia e pensei em tudo o que tinha perdido — mas também em tudo o que tinha conseguido salvar.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes temos de perder tudo até percebermos quem realmente somos? Será possível reconstruir uma vida entre as ruínas do passado? Talvez nunca saiba responder… Mas sei que lutei até ao fim.