“Mãe, Fugi Para o Porto” – O Desabafo de Uma Mãe Exausta
— Maria, onde é que tu vais assim? — ouvi a voz do António ecoar pela casa, carregada de impaciência e incredulidade. As malas estavam feitas, os miúdos já dormiam na casa da minha mãe e eu, com o coração aos pulos, tentava não tremer enquanto vestia o casaco.
— Vou para o Porto, António. Preciso de respirar. — A minha voz saiu mais firme do que esperava, mas por dentro sentia-me feita em pedaços. Ele olhou para mim como se eu tivesse enlouquecido.
— Vais deixar tudo assim? Vais abandonar os teus filhos? — O tom dele era acusador, quase cruel. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli-as. Não podia vacilar agora.
— Não estou a abandoná-los. Só preciso de uns dias. Preciso de mim. — Disse isto quase num sussurro, mas sabia que era verdade. Há anos que não pensava em mim.
Desde que a Leonor nasceu, há sete anos, e depois o Tiago, dois anos depois, a minha vida passou a ser uma sucessão de tarefas: fraldas, sopas, birras, trabalhos de casa, consultas, febres, noites mal dormidas. O António sempre foi trabalhador, mas nunca percebeu o que era chegar ao fim do dia sem forças nem para tomar banho. “És mãe, é normal estares cansada”, dizia ele. Mas não era só cansaço. Era um vazio, uma solidão que me corroía por dentro.
Lembro-me de uma noite em que o Tiago teve febre alta. Fiquei acordada a noite toda com ele ao colo, enquanto o António roncava no quarto ao lado. De manhã, quando lhe pedi para ficar com as crianças para eu dormir uma hora, ele respondeu: “Tenho de ir trabalhar. Tu é que estás em casa.” Senti-me invisível.
A minha mãe sempre me dizia: “Maria, cuida de ti também.” Mas como? Entre o trabalho a tempo parcial no supermercado e as exigências da casa, não sobrava nada para mim. As amigas foram desaparecendo — umas porque não tinham filhos e não compreendiam, outras porque estavam tão exaustas quanto eu.
O António começou a chegar cada vez mais tarde a casa. Dizia que era o trabalho, mas eu sabia que era para evitar o caos doméstico. Quando chegava, sentava-se no sofá com o telemóvel ou ia ver futebol com os amigos. Eu ficava sozinha com os miúdos, a tentar manter tudo sob controlo.
Houve um dia em que me olhei ao espelho e não me reconheci. Olheiras fundas, cabelo desgrenhado, roupa velha e manchada de comida dos miúdos. Onde estava a Maria de antes? Aquela que sonhava viajar pelo mundo, escrever um livro, dançar até de madrugada?
Na semana passada, depois de mais uma discussão sobre quem ia buscar os miúdos à escola — discussão essa que terminou com ele a dizer “És sempre tu a fazer dramas” — sentei-me na varanda e chorei até não ter mais lágrimas. Senti um aperto no peito tão forte que pensei que ia desmaiar.
Foi aí que decidi: precisava de fugir. Não era fugir dos meus filhos — Deus sabe o quanto os amo — mas fugir desta prisão invisível onde me tinha deixado fechar.
No dia seguinte, liguei à minha mãe:
— Mãe, podes ficar com eles uns dias? — A voz saiu-me trémula.
— Claro que sim, filha. Mas está tudo bem? — Ela percebeu logo que algo não estava certo.
— Preciso de descansar. Só isso. — Não consegui dizer mais nada.
Ela não fez perguntas. Sabia melhor do que ninguém o peso de ser mulher nesta terra onde se espera sempre que sejamos tudo para todos.
Arrumei umas mudas de roupa numa mala pequena e escrevi um bilhete ao António: “Preciso de tempo para mim. Os miúdos estão com a minha mãe. Não sei quando volto.” Saí antes do nascer do sol para não ter de enfrentar mais perguntas ou olhares acusadores.
No comboio para o Porto, olhei pela janela e deixei as lágrimas correrem livremente. Senti culpa — uma culpa esmagadora — mas também um alívio estranho. Pela primeira vez em anos, ninguém precisava de mim naquele momento.
Cheguei ao Porto sem planos. Fiquei num hostel barato perto da Ribeira e passei horas a caminhar junto ao Douro, a ver os barcos e os turistas felizes. Senti inveja deles — da leveza com que pareciam viver.
Numa dessas caminhadas, sentei-me numa esplanada e comecei a escrever num caderno velho que trouxe comigo:
“Quem sou eu sem ser mãe? Quem sou eu sem ser mulher do António? O que é que eu quero para mim?”
As respostas não vieram logo. Mas pela primeira vez em muito tempo senti vontade de procurar.
No segundo dia liguei à minha mãe:
— Como estão eles?
— Estão bem, filha. Sentem tua falta mas estão bem. E tu?
— Não sei bem… Sinto-me perdida e livre ao mesmo tempo.
Ela ficou em silêncio uns segundos antes de responder:
— Às vezes é preciso perdermo-nos para nos encontrarmos outra vez.
À noite recebi uma mensagem do António: “Quando voltas? Os miúdos perguntam por ti.” Não respondi logo. Senti raiva dele — por nunca ter percebido o quanto eu estava a sufocar — mas também tristeza por tudo o que estávamos a perder.
No terceiro dia encontrei uma livraria pequena e entrei só para fugir da chuva. Acabei por conversar com a dona, a Dona Teresa, uma senhora já idosa mas cheia de energia.
— Vejo-a triste — disse ela sem rodeios.
— Estou cansada… da vida — confessei.
Ela sorriu com ternura:
— Sabe, minha querida, às vezes temos de fechar uma porta para abrir outra. Não tenha medo de pedir ajuda.
Saí dali com um livro emprestado e um pouco mais de esperança no coração.
Ao fim de cinco dias comecei a sentir saudades dos meus filhos como nunca antes tinha sentido. Sonhava com eles todas as noites — o cheiro da pele deles depois do banho, as gargalhadas quando brincavam juntos.
Decidi voltar. Liguei à minha mãe:
— Vou apanhar o comboio amanhã.
Ela suspirou aliviada:
— Eles vão ficar tão felizes! E tu?
— Não sei… Mas preciso tentar mudar alguma coisa.
Quando cheguei a casa, o António estava à porta com ar preocupado.
— Maria… desculpa. Eu não percebi… Nunca pensei que estivesses assim tão mal.
Olhei para ele nos olhos:
— Não é só culpa tua. Eu também deixei chegar aqui. Mas preciso que as coisas mudem. Preciso de tempo para mim também.
Ele assentiu em silêncio. Pela primeira vez vi vulnerabilidade nele.
Os miúdos correram para mim aos gritos:
— Mãe! Mãe! Nunca mais vás embora!
Abracei-os com força e chorei outra vez — mas desta vez eram lágrimas diferentes.
Agora tento encontrar um equilíbrio: pedi ao António para dividir as tarefas da casa e dos miúdos comigo; voltei a escrever; comecei a sair uma vez por semana só para mim; aceitei ajuda da minha mãe sem culpa.
Ainda há dias difíceis — muitos — mas já não me sinto invisível.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem assim em silêncio? Quantas mães precisam de fugir para se reencontrarem? Será preciso chegar ao limite para sermos ouvidas?