Quando a Mãe Avisou: “Vêm os Primos” — O Dia em Que Decidi Não Fugir

— Não me venhas com desculpas, Mariana. Eles vêm cá este fim de semana e quero-te aqui, ouviste? — a voz da minha mãe ecoava pelo telefone, carregada de uma urgência que só as mães portuguesas sabem ter.

Suspirei fundo, sentindo o peso do mundo nos ombros. Oiço o relógio da cozinha a marcar cada segundo como se fosse um martelo a bater na minha cabeça. Desde pequena que sempre temi estes encontros familiares. Não era só o barulho, as conversas cruzadas ou o cheiro intenso do assado no forno. Era aquela sensação de nunca ser suficiente, de nunca corresponder ao que esperavam de mim.

A aldeia onde cresci, no interior do Alentejo, era pequena e todos se conheciam. A minha família era das mais antigas e respeitadas, mas também das mais críticas. Lembro-me de ser miúda e ouvir a minha avó dizer à minha mãe:

— A Mariana é tão calada… devias pô-la mais com as outras crianças. Assim nunca vai arranjar marido.

Essas palavras ficaram-me gravadas como uma tatuagem invisível. Cresci a tentar ser invisível, a evitar perguntas embaraçosas sobre o futuro, sobre namorados, sobre o emprego. Quando fui estudar para Lisboa, senti-me finalmente livre. Mas sempre que voltava à aldeia, era como se voltasse a vestir uma pele que já não me servia.

Agora, com trinta e dois anos, solteira e a trabalhar como professora numa escola secundária, continuava a sentir-me a ovelha negra da família. Os meus primos, todos casados e com filhos, eram o orgulho dos meus tios. Eu era “a menina da cidade”, aquela que nunca se ajeitou.

— Mariana, estás a ouvir-me? — insistiu a minha mãe.

— Estou, mãe. Eu vou. — respondi, surpreendendo-me até a mim própria.

Desliguei o telefone com as mãos a tremer. Senti uma mistura de medo e determinação. Talvez estivesse na altura de parar de fugir. Talvez fosse o momento de enfrentar tudo aquilo que me magoava.

O sábado chegou depressa demais. O cheiro do pão quente misturava-se com o aroma do café acabado de fazer quando entrei em casa dos meus pais. A minha mãe estava na cozinha, de avental posto e cabelo preso num carrapito apressado.

— Mariana! — exclamou ela, abraçando-me com força. — Ainda bem que vieste cedo. Preciso de ajuda com as sobremesas.

Sorri-lhe, tentando ignorar o nervosismo que me apertava o peito.

— Claro, mãe. Diz-me o que queres que faça.

Enquanto batia claras em castelo para o molotof, ouvi vozes vindas do quintal. Os meus primos já tinham chegado com os filhos pequenos a correrem pelo jardim. O meu tio António entrou na cozinha com aquele sorriso largo e voz trovejante:

— Olha quem é ela! A nossa professora da capital! Então, Mariana, já arranjaste namorado ou continuas a dar cabo dos miúdos lá na escola?

Ri-me sem vontade.

— Continuo solteira e feliz, tio.

Ele piscou-me o olho, mas percebi o olhar trocista da minha tia Rosa por trás dele.

O almoço foi um desfile de pratos tradicionais: borrego assado, arroz de forno, salada de tomate da horta. Mas também foi um desfile de perguntas indiscretas e comparações dolorosas.

— A Joana já está à espera do segundo filho! — anunciou orgulhosamente a tia Rosa, olhando para mim como quem diz “aprende”.

— O Pedro foi promovido no banco — acrescentou outra tia.

Senti-me encolher na cadeira. A minha mãe tentava desviar as conversas para outros temas, mas era inútil. Tudo girava à volta dos filhos perfeitos dos outros.

No meio do barulho, ouvi a voz baixa do meu pai:

— Estás bem?

Assenti com um sorriso forçado. Mas por dentro sentia-me prestes a explodir.

Depois do almoço, enquanto todos se juntavam na sala para ver fotografias antigas e contar histórias repetidas, fui até ao quintal respirar fundo. O sol batia forte nas oliveiras e ouvi os risos das crianças ao longe.

De repente, senti uma presença atrás de mim. Era o meu primo Miguel, aquele com quem sempre tive mais afinidade.

— Estás a fugir outra vez? — perguntou ele em tom brincalhão.

— Não estou a fugir… só preciso de ar — respondi.

Ele sentou-se ao meu lado no muro baixo do quintal.

— Sabes… às vezes também sinto que não pertenço aqui — confessou ele baixinho. — Só que eu nunca tive coragem de sair como tu fizeste.

Olhei para ele surpreendida. Sempre achei que ele era feliz ali, com a mulher e os filhos pequenos.

— A sério?

Ele assentiu.

— Aqui tudo é tradição… tudo é expectativa. Às vezes sinto falta de ser só eu próprio.

Ficámos em silêncio durante uns minutos. Senti uma onda de empatia por ele — talvez não fosse só eu que me sentia deslocada naquela família.

Quando voltámos para dentro, a conversa tinha mudado de tom. A minha tia Rosa estava exaltada:

— Não percebo esta mania dos jovens quererem ser diferentes! No nosso tempo ninguém fazia perguntas! Era casar e pronto!

A minha mãe tentou acalmar os ânimos:

— Oh Rosa, cada um sabe de si…

Mas a tia não se calava:

— E tu, Mariana? Achas-te melhor do que nós porque foste estudar para Lisboa? Porque não tens marido nem filhos?

Senti todos os olhares virados para mim. O coração batia-me tão forte que pensei que ia desmaiar. Mas respirei fundo e decidi falar:

— Não me acho melhor do que ninguém. Só quero ser feliz à minha maneira. Sei que não sou aquilo que esperavam… mas estou cansada de fingir que sou outra pessoa só para agradar à família.

Houve um silêncio pesado na sala. Vi lágrimas nos olhos da minha mãe e um ar chocado no rosto da tia Rosa.

O meu pai levantou-se devagar e pousou uma mão no meu ombro:

— A Mariana tem razão. Cada um tem o seu caminho.

A partir desse momento, algo mudou no ambiente. As conversas tornaram-se menos agressivas e senti um alívio estranho dentro de mim — como se tivesse finalmente largado um fardo antigo.

No final do dia, quando todos se preparavam para ir embora, a minha mãe abraçou-me com força:

— Tenho tanto orgulho em ti…

Sorri-lhe com lágrimas nos olhos.

Agora, sentada no meu quarto em Lisboa a recordar aquele dia intenso, pergunto-me: quantos de nós vivem presos às expectativas dos outros? E até quando vamos continuar a fugir de quem realmente somos?