Entre o Amor e a Preocupação: O Peso de Ser Mãe e Sogra em Portugal
— Rui, não achas que já chega? — ouvi a voz da Inês ecoar pela casa, carregada de impaciência. O som dos pratos a bater na cozinha misturava-se com o tom cortante das palavras dela. Sentei-me no sofá, com o coração apertado, fingindo ler o jornal, mas cada sílaba deles era como uma faca a cortar o silêncio da noite.
Nunca imaginei que a minha vida chegasse aqui. Aos 35 anos, os médicos disseram-me que nunca seria mãe. Lembro-me do consultório frio, do cheiro a desinfetante, do olhar vazio do António, meu marido, ao meu lado. Chorámos juntos naquela noite, abraçados como se o mundo tivesse acabado. Mas, contra todas as probabilidades, engravidei meses depois. Inês nasceu como um milagre — o nosso milagre. Cresceu saudável, curiosa, cheia de energia. Era a menina dos nossos olhos.
Mas os anos passaram e a alegria deu lugar à preocupação. Inês sempre foi diferente: teimosa, impulsiva, com uma língua afiada que não perdoava ninguém. Quando conheceu o Rui, pensei que talvez ele fosse o equilíbrio que ela precisava. Rui era calmo, paciente, trabalhador — um rapaz de boas famílias de Coimbra, que veio para Lisboa estudar Engenharia. Apaixonaram-se depressa demais, casaram-se ainda mais depressa. E eu… eu fiquei a ver tudo acontecer como quem assiste a uma tempestade a formar-se no horizonte.
— Não é assim tão simples, Inês! — respondeu Rui, num tom cansado. — Estou exausto. Cheguei agora do trabalho e ainda tenho de preparar aquela apresentação para amanhã.
— Pois claro! O trabalho é sempre mais importante do que eu! — gritou ela.
Fechei os olhos. A minha filha herdou o meu temperamento — mas multiplicado por dez. O António dizia sempre: “Deixa-os resolverem entre eles.” Mas eu não conseguia. Sentia-me responsável por tudo: por ela ser assim, por ele sofrer calado.
Naquela noite, depois de mais uma discussão, ouvi a porta do quarto deles bater com força. Fui até à cozinha e encontrei Rui sentado à mesa, com as mãos na cabeça.
— Rui… — comecei, hesitante.
Ele olhou para mim com olhos vermelhos.
— Dona Maria… às vezes não sei se aguento mais.
Sentei-me ao lado dele e toquei-lhe no ombro.
— Eu sei que não é fácil. A Inês… sempre foi complicada. Mas ela ama-te, acredita.
Ele suspirou.
— Eu amo-a também. Mas sinto que tudo o que faço está errado. Ela nunca está satisfeita…
O silêncio instalou-se entre nós. Senti uma dor funda no peito — uma culpa antiga, como se tudo aquilo fosse minha responsabilidade. Lembrei-me das noites em que Inês era bebé e chorava sem parar; das birras na escola; das discussões com os professores; das vezes em que me disseram que ela precisava de ajuda — e eu recusei sempre admitir que algo estava errado.
No dia seguinte, tentei falar com Inês enquanto ela tomava o pequeno-almoço.
— Filha… ontem à noite…
Ela interrompeu-me com um olhar frio.
— Mãe, não te metas. Isto é entre mim e o Rui.
— Eu só quero ajudar…
— Já ajudaste demais — disse ela, levantando-se bruscamente e saindo de casa sem olhar para trás.
Fiquei ali parada, sozinha na cozinha, com o café arrefecido nas mãos. Senti-me inútil. O António tentava animar-me:
— Maria, tens de confiar neles. Eles são adultos.
Mas como confiar? Como aceitar que talvez a minha filha não seja feliz? Ou pior: que talvez ela faça infeliz quem está ao lado dela?
As semanas passaram e as discussões tornaram-se rotina. Rui começou a chegar mais tarde a casa; Inês passava horas fechada no quarto ou saía com amigas sem avisar ninguém. O ambiente estava insuportável.
Uma noite, ouvi-os discutir ainda mais alto do que o habitual. De repente, silêncio absoluto. Fui até ao corredor e vi Rui a sair com uma mala na mão.
— Rui! Onde vais?
Ele parou à porta, sem me olhar nos olhos.
— Preciso de espaço… Não aguento mais assim.
Vi-o desaparecer pelas escadas abaixo e senti um vazio imenso dentro de mim. Corri até ao quarto da Inês; ela estava sentada na cama, a chorar em silêncio.
— Filha…
Ela olhou para mim com os olhos vermelhos de lágrimas.
— Porque é que ninguém me entende? — sussurrou.
Sentei-me ao lado dela e abracei-a como quando era pequena.
— Eu entendo-te… mas tens de aprender a ouvir também.
Ela chorou no meu ombro durante minutos intermináveis. Pela primeira vez em anos, senti que talvez pudesse ajudá-la realmente — não protegendo-a do mundo, mas mostrando-lhe como enfrentá-lo.
Nos dias seguintes tentei aproximar as pontas soltas daquela família desfeita. Falei com Rui ao telefone:
— Não desistas dela… Ela precisa de ti mais do que imaginas.
Ele respondeu:
— Preciso de tempo para pensar… Não quero magoar ninguém.
O António mantinha-se distante; dizia que era melhor não nos metermos mais. Mas eu não conseguia desligar-me daquele sofrimento todo — era como se cada lágrima da Inês fosse minha também.
Passaram-se meses até Rui voltar a casa para conversar com ela. Sentaram-se na sala; eu e António saímos para lhes dar espaço. Quando voltámos, estavam abraçados no sofá — mas havia uma tristeza nova nos olhos deles: uma maturidade forçada pelo sofrimento.
A vida voltou ao normal… ou quase. As discussões diminuíram, mas nunca desapareceram completamente. Inês começou terapia; Rui também procurou ajuda para lidar com o stress do trabalho e da relação. Eu aprendi a afastar-me um pouco — a deixar que eles resolvessem os próprios problemas sem me sentir responsável por tudo.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que fiz bem? Será que devia ter sido mais firme quando era pequena? Ou menos protetora? Será que algum dia uma mãe deixa de se preocupar com o futuro dos filhos? E vocês… também sentem este peso no peito quando veem os vossos filhos sofrerem?