Lágrimas de Um Filho: O Adeus Que Nunca Dei ao Meu Pai

— Não me digas que vais mesmo embora, pai. — A minha voz saiu trémula, quase um sussurro, enquanto ele fechava a mala com um gesto cansado. O relógio da cozinha marcava 23h47, e o cheiro a café frio pairava no ar, misturado com o silêncio pesado que se instalara entre nós.

O meu pai olhou-me, os olhos fundos de quem já não dorme há dias. — Miguel, às vezes temos de fazer escolhas difíceis. — Ele tentou sorrir, mas o sorriso morreu-lhe nos lábios. — Eu volto logo, prometo.

Mas não voltou. Naquela madrugada chuvosa de fevereiro, um acidente na A1 levou-o para sempre. Lembro-me do telefone a tocar às 3h12, da minha mãe a gritar, do meu corpo a gelar como se tivesse sido atirado para dentro de um poço sem fundo. Tinha 19 anos e, de repente, era como se tivesse envelhecido décadas numa noite só.

Os dias seguintes foram um borrão de rostos conhecidos e desconhecidos, palavras vazias de consolo e o cheiro a flores murchas na sala. A minha mãe fechou-se num silêncio duro, quase agressivo. O meu irmão mais novo, o Tiago, chorava baixinho no quarto dele. Eu vagueava pela casa como um fantasma, à procura de sinais do meu pai: o casaco pendurado na cadeira, o jornal dobrado na mesa, a caneca com restos de chá.

A família começou a desmoronar-se logo depois do funeral. A minha mãe culpava o trabalho do meu pai — sempre ausente, sempre em viagens. — Se ele tivesse ficado… — murmurava ela, vezes sem conta, como se repetir a frase pudesse mudar o passado. O Tiago refugiou-se nos videojogos e nas notas baixas. Eu? Eu só queria desaparecer.

Uma noite, ouvi a minha mãe ao telefone com a minha tia Rosa:
— Não sei o que fazer com o Miguel. Ele não fala comigo. Nem sequer olha para mim.
— Dá-lhe tempo — respondeu a tia Rosa. — Cada um tem o seu luto.

Mas eu não queria tempo. Queria respostas. Queria saber porque é que o meu pai nunca me disse que me amava. Porque é que nunca me levou ao estádio ver o Benfica jogar, como prometera tantas vezes. Porque é que nunca me ensinou a fazer aquele arroz de polvo que só ele sabia preparar.

O tempo passou devagar, arrastando-se pelos corredores da casa como uma sombra fria. O primeiro Natal sem ele foi um suplício: a mesa parecia maior, as cadeiras mais vazias. A minha mãe tentou animar-nos com rabanadas e piadas forçadas, mas ninguém riu.

No liceu, os meus amigos evitavam falar do assunto. Só a Inês, a minha melhor amiga desde a primária, teve coragem de me perguntar:
— Tens saudades dele?
— Todos os dias — respondi, com um nó na garganta.

Ela apertou-me a mão por baixo da mesa e ficou ali comigo em silêncio. Às vezes, é tudo o que precisamos.

O ano passou e chegou fevereiro outra vez. O aniversário da morte do meu pai aproximava-se como uma tempestade anunciada. A minha mãe decidiu que devíamos ir ao cemitério juntos.

— É importante para todos nós — disse ela, num tom que não admitia discussão.

No dia marcado, acordei cedo e fui até à garagem buscar as flores que comprara no dia anterior: lírios brancos, os preferidos do meu pai. O Tiago vinha atrás de mim, cabisbaixo.

— Achas que ele nos ouve? — perguntou-me de repente.
— Não sei… Mas gosto de pensar que sim.

Chegámos ao cemitério sob um céu cinzento e pesado. A campa estava limpa; alguém já lá tinha estado antes de nós. A minha mãe ajoelhou-se e começou a rezar baixinho. Eu fiquei de pé, sem saber o que dizer ou fazer.

Foi então que reparei num envelope pousado junto à lápide. O meu nome estava escrito à mão: “Miguel”.

Olhei em volta, confuso. Ninguém parecia ter reparado no envelope. Peguei nele com mãos trémulas e abri-o ali mesmo.

Dentro estava uma carta escrita pelo meu pai. Reconheci logo a letra torta e apressada:

“Meu filho,
Se estás a ler isto é porque já não estou aí contigo. Sei que nunca fui bom com palavras nem com gestos de carinho, mas quero que saibas que te amo mais do que alguma vez consegui mostrar. Sempre tive orgulho em ti — mesmo quando discutíamos por coisas parvas ou quando achavas que eu não te compreendia.
Desculpa por todas as promessas por cumprir e pelos jogos de futebol adiados. Espero que um dia consigas perdoar-me por não ter estado mais presente.
Cuida da tua mãe e do Tiago por mim.
Com amor,
Pai”

As lágrimas caíram-me pelo rosto sem controlo. A minha mãe levantou-se e abraçou-me com força; o Tiago encostou-se ao meu ombro.

— Ele deixou-te uma carta? — sussurrou a minha mãe.
Assenti, incapaz de falar.

Naquele momento percebi que o vazio nunca desapareceria completamente — mas talvez pudesse aprender a viver com ele. Talvez fosse possível reconstruir a família aos poucos, com gestos pequenos e palavras sinceras.

Nos meses seguintes tentei ser melhor irmão para o Tiago e filho para a minha mãe. Começámos a jantar juntos outra vez; aos domingos fazíamos arroz de polvo (a receita nunca ficou igual à do meu pai, mas ríamos das tentativas falhadas). Fui ao estádio com o Tiago pela primeira vez; gritámos pelo Benfica até ficarmos roucos.

A carta do meu pai ficou guardada na minha carteira. Sempre que sentia saudades ou dúvidas sobre o futuro, lia-a outra vez.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantos de nós deixamos palavras por dizer? Quantos abraços adiamos à espera de um momento perfeito que nunca chega? Talvez seja esse o maior legado do meu pai: ensinar-me que nunca é tarde para amar — mesmo quando já só restam memórias.