O Meu Irmão Deu Tudo, Mas Quando Caiu, Ficou Só: Um Retrato de Sacrifício e Esquecimento

— Não me venhas com desculpas, Leonor! — gritou o meu irmão António, a voz rouca de cansaço e mágoa. — Eles não querem saber. Não querem saber de mim!

Fiquei parada à porta da sala, as mãos trémulas, o coração apertado. O António estava sentado no sofá velho, o olhar perdido na televisão desligada. O cheiro a sopa requentada pairava no ar, misturado com o odor agridoce dos medicamentos que se acumulavam na mesa de centro. Eu sabia que ele tinha razão. Os filhos dele, a quem ele dera tudo, não apareciam há semanas.

— Eles têm as suas vidas, António… — tentei justificar, mas a minha voz saiu fraca, quase um sussurro.

Ele virou-se para mim, os olhos vermelhos de raiva e tristeza. — E eu? Eu não tive vida? Não fui eu que trabalhei noites inteiras para lhes pagar os estudos? Não fui eu que vendi o carro para a Mariana ir para Lisboa?

As palavras dele cortavam-me como facas. Lembrei-me da noite em que ele chegou a casa, depois de mais um turno extra na fábrica de cortiça. As mãos cheias de calos, o rosto suado, mas um sorriso orgulhoso porque tinha conseguido pagar a propina da filha mais velha. Lembrei-me de como ele se privava de tudo: nunca foi de férias, nunca comprou roupa nova para si. Tudo era para os filhos.

Agora, estava ali, sozinho. Eu era a única que ainda vinha vê-lo. A mulher dele, a Teresa, tinha morrido há três anos. Desde então, o António foi definhando. Primeiro veio a diabetes, depois os problemas no coração. E os filhos… Os filhos arranjaram desculpas: trabalho, filhos pequenos, distância.

— A Mariana disse que vem no fim-de-semana — tentei animá-lo.

Ele riu-se, um riso amargo. — Diz isso há meses. E o Pedro? Nem uma chamada.

Sentei-me ao lado dele e peguei-lhe na mão. Estava fria e seca. — Queres que lhes ligue?

Ele abanou a cabeça. — Para quê? Para ouvirem mais uma vez o velho chato a queixar-se?

O silêncio caiu sobre nós como um manto pesado. O relógio da parede marcava as horas com um tique-taque irritante. Lá fora, ouvia-se o som distante dos sinos da igreja e o ladrar de um cão.

De repente, lembrei-me da infância. Eu e o António corríamos pelos campos atrás das borboletas. Ele era sempre o protetor, o irmão mais velho que me defendia dos rapazes da aldeia. Quando os nossos pais morreram cedo demais, foi ele que ficou comigo. Abandonou os estudos para trabalhar na fábrica. Nunca se queixou.

— Lembras-te do verão em que fizemos aquela cabana junto ao rio? — perguntei, tentando puxá-lo para longe da tristeza.

Ele sorriu por um instante. — Lembro. Tu tinhas medo das cobras.

— E tu disseste que ias sempre proteger-me.

Ele apertou-me a mão com força inesperada. — E protegi.

As lágrimas vieram-me aos olhos sem pedir licença. — Protegeste todos nós, António.

A campainha tocou de repente. O António sobressaltou-se. Olhámos um para o outro com esperança e medo.

Fui abrir a porta: era a vizinha, Dona Emília, com um tupperware de arroz doce.

— Vim ver como está o António — disse ela, sorrindo com pena.

Agradeci-lhe e levei-lhe o arroz doce à sala. O António fingiu um sorriso e agradeceu também. Mas assim que ela saiu, voltou ao silêncio sombrio.

— Sabes o que mais me custa? — murmurou ele, olhando para as mãos.— Não é estar doente. É sentir que não fiz diferença nenhuma.

— Não digas isso! Fizeste tudo por eles!

Ele abanou a cabeça devagarinho. — Se tivesse feito tudo certo… não me tinham esquecido assim.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como é possível? Como é possível alguém dar tanto e receber tão pouco? Lembrei-me das discussões familiares ao domingo à mesa: a Mariana sempre com pressa para ir embora; o Pedro agarrado ao telemóvel; o António a tentar puxar conversa sobre futebol ou política e eles a responderem por monossílabos.

Na última Páscoa, nem sequer vieram cá. Mandaram uma mensagem no WhatsApp: “Desculpa pai, estamos cheios de trabalho.” O António ficou sentado à mesa posta para quatro pessoas, a olhar para os pratos vazios.

— Talvez devesses ter sido mais duro com eles — disse eu num impulso.— Talvez devesses ter pensado mais em ti.

Ele olhou-me com tristeza.— Não sei ser assim… Sempre achei que se desse tudo por eles…

A voz dele falhou. Levantou-se com dificuldade e foi até à janela. Lá fora começava a chover miudinho sobre os telhados vermelhos da aldeia.

— Quando era miúdo — disse ele baixinho — prometi a mim mesmo que nunca ia deixar ninguém sentir-se sozinho nesta casa…

Fiquei ali sentada a olhar para ele, tão frágil agora, tão diferente do irmão forte e destemido da minha infância.

No dia seguinte tentei ligar à Mariana e ao Pedro. A Mariana atendeu ao fim de vários toques:

— Mãe… desculpa… estou mesmo cheia de trabalho…

— Mariana, é importante. O teu pai não está bem.

— Eu sei… eu vou tentar passar aí no fim-de-semana…

O Pedro nem sequer atendeu. Mandei mensagem: “O teu pai precisa de ti.” Recebi um emoji de polegar levantado em resposta.

Senti-me impotente e furiosa. Como é possível? Como é possível alguém esquecer assim quem lhes deu tudo?

Os dias foram passando e o António foi ficando cada vez mais calado. Já quase não comia. Passava horas sentado à janela a olhar para a rua deserta.

Uma tarde encontrei-o a chorar baixinho no quarto.— Desculpa… — disse ele quando me viu.— Não queria que me visses assim.

Sentei-me ao lado dele na cama.— Não tens de pedir desculpa por sentir.

Ele olhou-me nos olhos.— Achas que eles vão sentir a minha falta?

Não soube responder-lhe.

Na sexta-feira seguinte apareceu finalmente a Mariana. Entrou apressada, com o casaco ainda vestido.— Olá pai! Olá tia! Desculpem… tive imenso trânsito…

O António sorriu-lhe com ternura.— Olá filha…

Ela ficou dez minutos, falou do trabalho, dos filhos dela, do marido que estava à espera no carro.— Tenho mesmo de ir… mas prometo que venho cá no próximo mês!

Quando saiu, o António ficou ainda mais triste.— Ela já cá não pertence — murmurou ele.— Já não sou parte da vida dela.

No domingo seguinte recebi uma chamada do hospital: o António tinha sido internado de urgência. Corri para lá e encontrei-o ligado às máquinas, pálido como nunca o tinha visto.

Sentei-me ao lado dele e segurei-lhe na mão.— Estou aqui… não te vou deixar sozinho.

Ele abriu os olhos com esforço.— Obrigado… Leonor…

Naquela noite fiquei ali sentada até adormecer encostada à cama dele. Nenhum dos filhos apareceu.

O António morreu dois dias depois. No funeral estavam meia dúzia de vizinhos e eu. A Mariana chegou atrasada; o Pedro nem apareceu.

Quando todos se foram embora fiquei sozinha junto à campa dele.— Foste tu que me ensinaste o valor do sacrifício… mas será que valeu a pena? Será que amar tanto assim só traz dor?

E vocês? Acham que vale a pena dar tudo por quem amamos? Ou será melhor aprender a pensar mais em nós próprios?