Entre o Amor e o Sacrifício: O Desabafo de uma Mãe Portuguesa

— Mãe, podes ir buscar a Leonor à escola hoje? Tenho uma reunião importante — pediu a Dóra, sem sequer levantar os olhos do telemóvel.

Senti o coração apertar, não pela tarefa em si, mas pelo tom. Já não era um pedido, era uma ordem disfarçada de rotina. Olhei para ela, sentada à mesa da cozinha, rodeada de papéis e chávenas vazias — todas por lavar, claro. Desde que voltou para casa, depois daquele divórcio doloroso, a minha filha parecia ter desaprendido a ser adulta. Ou talvez nunca tivesse aprendido.

Quando Dóra e a pequena Leonor chegaram há dois anos, achei que era o meu dever recebê-las. O apartamento em Almada era pequeno, mas aconchegante. Lembro-me do primeiro dia: Dóra chorava baixinho no sofá, Leonor dormia no meu colo. Senti-me útil, necessária. Afinal, para que serve uma mãe senão para amparar os filhos quando caem?

Mas com o tempo, o amparo transformou-se em rotina. Eu cozinhava, lavava, passava a ferro. Levava Leonor ao ballet, ao médico, às festas de aniversário. Dóra saía cedo para o trabalho e chegava tarde, sempre cansada, sempre com pressa. Ao início compreendi: ela precisava de tempo para se recompor. Mas os meses passaram e nada mudou.

— Mãe, não te importas de fazer o jantar? Estou exausta — dizia ela quase todos os dias.

E eu fazia. Sempre fiz. Mas comecei a sentir-me invisível. A minha reforma, que imaginei tranquila, cheia de passeios com as amigas e tardes de leitura no jardim, foi engolida por tarefas domésticas e responsabilidades alheias.

Uma noite, enquanto lavava a loiça sozinha, ouvi Dóra ao telefone na sala:

— Sim, a minha mãe trata de tudo aqui em casa. Nem sei como faria sem ela.

A frase ficou-me atravessada na garganta. “Trata de tudo” — como se eu fosse uma empregada silenciosa, um dado adquirido.

Tentei falar com ela várias vezes:

— Dóra, precisamos de conversar sobre a divisão das tarefas…

Ela suspirava, revirava os olhos:

— Mãe, agora não! Estou cheia de trabalho! Não compliques.

E assim fui adiando o confronto. Afinal, não queria ser egoísta. Mas comecei a sentir-me usada. A minha pensão mal chegava para as despesas extra: comida para três, roupas para Leonor, contas da luz sempre a subir. E Dóra raramente contribuía — dizia que estava “apertada” com o ordenado.

A situação atingiu o limite numa manhã de sábado. Tinha planeado ir ao mercado com a minha amiga Lurdes — um dos poucos prazeres que ainda me permitia — quando Dóra apareceu à porta do meu quarto:

— Preciso que fiques com a Leonor hoje. Tenho de ir trabalhar.

— Dóra, já tinha combinado sair… — tentei explicar.

— Ó mãe! Não podes adiar isso? A Leonor precisa de ti! — respondeu ela num tom quase zangado.

Senti-me esmagada pela culpa. Fiquei em casa, claro. Mas nesse dia chorei no banho como há muito não fazia.

Comecei a reparar em pequenos detalhes: Dóra nunca me perguntava como estava; nunca agradecia; nunca me dava espaço para respirar. A Leonor era um doce — abraçava-me ao fim do dia e dizia “gosto muito de ti, avó” — mas até ela começou a esperar que eu estivesse sempre disponível.

Certa noite, depois de deitar a neta, sentei-me com Dóra na sala.

— Precisamos mesmo de falar — disse eu com firmeza.

Ela olhou-me surpreendida:

— O que foi agora?

— Sinto que estou a perder-me aqui dentro desta casa. Não tenho tempo para mim. Não sou só tua mãe ou avó da Leonor — sou a Maria do Carmo! Preciso do meu espaço.

Dóra ficou em silêncio por uns segundos. Depois encolheu os ombros:

— Achas que é fácil para mim? Estou sozinha com uma filha pequena! Preciso da tua ajuda!

— Eu sei — respondi baixinho — mas também preciso de ti como filha. Preciso que me vejas.

A conversa terminou ali. Nos dias seguintes, Dóra ficou mais fria comigo. Passávamos pela casa como estranhas. Senti-me ainda mais sozinha.

Foi então que decidi procurar ajuda fora: inscrevi-me num grupo de leitura na biblioteca municipal e comecei a sair mais vezes com as amigas. Ao início senti-me culpada — deixava Leonor com Dóra ao fim-de-semana e via o olhar reprovador da minha filha.

Uma tarde, ao regressar do grupo de leitura, encontrei Leonor sentada no chão da cozinha a chorar. Dóra estava ao telefone no quarto, porta fechada.

— O que se passa, querida?

— A mamã gritou comigo porque fiz barulho… — soluçou ela.

Abracei-a e senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Fui até ao quarto da minha filha e bati à porta:

— Dóra! Isto não pode continuar assim!

Ela olhou-me com olhos vermelhos:

— Não percebes? Estou exausta! Não consigo fazer tudo sozinha!

— Mas não estás sozinha! Só que tens de perceber que eu também tenho limites!

Nesse dia chorámos as duas. Pela primeira vez em muito tempo senti que falávamos verdadeiramente uma com a outra.

Nos dias seguintes tentámos reorganizar as tarefas: Dóra começou a cozinhar duas vezes por semana; eu deixei de fazer todas as compras; Leonor passou a ajudar a pôr a mesa. Não foi fácil — houve discussões, portas batidas e silêncios longos à mesa do jantar.

Mas algo mudou: comecei a recuperar pedaços de mim própria. Voltei a pintar — algo que não fazia desde os tempos em que o meu marido era vivo. E pela primeira vez em anos ouvi Dóra dizer:

— Obrigada por tudo, mãe.

Ainda hoje há dias difíceis. Às vezes sinto-me tentada a voltar ao papel de mártir silenciosa — mas lembro-me do quanto me custou chegar aqui.

Agora pergunto-me: quantas mães portuguesas vivem presas neste ciclo de dar sem receber? Até onde vai o amor antes de se transformar em sacrifício? E será possível ensinar os nossos filhos a ver-nos como pessoas inteiras — e não apenas como mães?