“Porque Ninguém Me Ligou?” – O Dia em que a Família se Desfez à Mesa
— Porque ninguém me ligou? — A voz da minha sogra cortou o ar como uma faca afiada, logo depois do brinde. O silêncio caiu sobre a mesa, abafando até o som dos talheres a bater nos pratos de faiança. Eu olhei para o meu marido, o João, à espera de uma reação. Ele desviou o olhar, fitando o copo de vinho tinto como se ali estivesse a resposta para todos os problemas do mundo.
A casa da Dona Amélia, no meio do Ribatejo, estava cheia de aromas: pão acabado de cozer, cabrito assado, arroz de forno e aquele cheiro doce das filhoses que ela fazia questão de preparar em todas as festas. Era o aniversário do João, e ela tinha-nos convidado com semanas de antecedência. Eu sabia que era importante para ela — desde que o marido morreu, há três anos, os aniversários eram o pretexto para juntar a família.
Mas este ano, algo estava diferente. A Dona Amélia parecia mais cansada, os olhos fundos e as mãos trémulas quando me abraçou à chegada. A mesa estava posta com esmero, mas faltava-lhe aquele brilho de outros tempos. Os netos corriam pelo quintal, indiferentes ao peso que pairava no ar.
O almoço decorreu entre conversas banais e risos forçados. O irmão do João, o Pedro, chegou atrasado com a mulher, a Carla, e as duas filhas. Trazia um bolo comprado na pastelaria da vila — um gesto que a Dona Amélia nunca perdoava. “Bolo de compra não tem amor”, dizia sempre.
Quando chegou a hora do brinde, levantámos os copos. O João agradeceu com um sorriso tímido:
— Obrigado, mãe. Sem ti isto não era possível.
Foi então que ela largou a pergunta:
— Porque ninguém me ligou ontem? Nem tu, nem o Pedro… Nem sequer uma mensagem.
O Pedro encolheu os ombros:
— Mãe, íamos ver-te hoje…
— Não é a mesma coisa! — interrompeu ela, com a voz embargada. — Ontem fez três anos que o vosso pai partiu. Acham que eu não sinto falta dele? Acham que eu não preciso de ouvir a voz dos meus filhos?
O silêncio tornou-se insuportável. Senti um nó na garganta. Lembrei-me da minha própria mãe, sozinha em Lisboa, e de quantas vezes também eu me esqueci de lhe ligar em dias importantes.
A Carla tentou aliviar:
— Amélia, sabe que estamos sempre aqui para si…
— Estão? — Ela bateu com a mão na mesa. — Só aparecem quando há comida! Quando preciso de companhia, ninguém aparece.
O João levantou-se abruptamente:
— Mãe, não faças isto agora.
Ela olhou-o nos olhos, lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces enrugadas:
— Agora? Quando é que é o momento certo para dizer que me sinto sozinha nesta casa enorme?
Os netos entraram na sala nesse instante, trazendo consigo o cheiro do campo e uma alegria inocente que contrastava com o ambiente pesado. A minha filha mais nova correu para mim:
— Mamã, posso ir ver os coelhos?
Assenti com um sorriso forçado e ela saiu disparada. Aproveitei para sair também e respirar fundo no alpendre. O ar estava pesado de humidade e tristeza.
Ouvi vozes exaltadas lá dentro. O Pedro acusava o João de nunca ligar à mãe; o João respondia que era sempre ele quem tratava das contas da casa e das idas ao médico. A Carla chorava baixinho. Senti-me impotente — não era minha família por sangue, mas já fazia parte daquele enredo há mais de dez anos.
Lembrei-me do primeiro aniversário do João depois da morte do pai. A Dona Amélia chorou durante todo o almoço, mas ninguém falou sobre isso. Todos fingiram que era só mais um dia feliz. Talvez tenha sido aí que tudo começou a desmoronar.
Voltei à sala quando ouvi um estrondo — um prato partido no chão. A Dona Amélia estava sentada à cabeceira da mesa, mãos no rosto. O João ajoelhou-se ao lado dela:
— Desculpa, mãe… Eu devia ter ligado.
Ela não respondeu. O Pedro saiu porta fora sem dizer palavra; a Carla foi atrás dele com as filhas.
Ficámos ali, eu, o João e a Dona Amélia. O relógio da parede marcava as quatro da tarde; lá fora os sinos da igreja tocavam para a missa.
— Sabes — disse ela finalmente — quando somos jovens achamos que a família é eterna. Mas depois cada um segue o seu caminho e esquecem-se de quem ficou para trás.
O João chorava em silêncio. Eu abracei-os aos dois.
Na viagem de regresso a Lisboa, ninguém falou. As crianças dormiam no banco de trás; eu olhava pela janela os campos dourados pelo sol poente e pensava em como tudo pode mudar num instante.
Chegámos a casa tarde. O João foi direto para o duche; eu sentei-me na cozinha com uma chávena de chá frio entre as mãos. Peguei no telemóvel e liguei à minha mãe.
— Olá mãe… Está tudo bem?
Do outro lado ouvi um suspiro emocionado:
— Está sim, filha… Que bom ouvir-te.
Desliguei com lágrimas nos olhos. Quantas vezes deixamos para amanhã aquilo que devia ser dito hoje? Quantas famílias se desmoronam por falta de uma simples chamada?
E vocês? Já ligaram hoje à vossa mãe?