Quando a Fatura do Casamento Chegou: Segredos, Família e Corações Partidos
— Não posso acreditar, mãe! Como é que só agora me dizes isto? — gritei, sentindo o chão fugir-me dos pés. O eco da minha voz ressoou pela cozinha da casa dos meus pais, onde o cheiro do café forte contrastava com a amargura do momento. A minha mãe, Maria do Carmo, olhava para mim com olhos vermelhos, as mãos trémulas a torcerem o pano da loiça.
— Filha, eu juro que tentei… mas não fazia ideia que os pais do Miguel também estavam aflitos. Eles sempre disseram que iam pagar metade da festa! — respondeu ela, a voz embargada.
O relógio marcava quase meia-noite. A casa estava silenciosa, exceto pelo som abafado dos meus soluços. Amanhã era o meu casamento. Ou pelo menos devia ser.
Desde pequena que sonhava com este dia. O vestido branco, a igreja de Santa Maria decorada com flores campestres, os primos todos reunidos no salão da Quinta do Vale. O Miguel sempre me dizia: “Vamos fazer tudo à portuguesa, com fartura e alegria!” E eu acreditava. Acreditava nele, na promessa dos nossos pais de ajudarem, na ideia ingénua de que tudo se resolve quando há amor.
Mas agora, sentada à mesa da cozinha, percebia que nada estava resolvido. Os pais do Miguel tinham convidado quase cinquenta pessoas da família deles — tios afastados, primos que nem conhecia — e prometeram pagar metade das despesas. Só que hoje, na véspera do casamento, a mãe dele ligou-me a chorar.
— Filipa… — disse ela, a voz trémula ao telefone — Não conseguimos arranjar o dinheiro. O meu marido perdeu o emprego há dois meses e não quisemos preocupar-vos…
Fiquei sem palavras. Senti-me traída, usada. Como é que alguém convida tanta gente para um casamento sabendo que não pode pagar? Como é que se esconde um segredo destes até ao último minuto?
O Miguel chegou pouco depois. Entrou em casa com o casaco ainda molhado da chuva e encontrou-me sentada no chão da cozinha, rodeada de papéis: orçamentos da quinta, faturas do catering, listas de convidados rabiscadas à pressa.
— O que se passa? — perguntou ele, ajoelhando-se ao meu lado.
— Os teus pais não vão pagar nada — disse-lhe, sem conseguir olhar nos olhos dele. — E agora? O que fazemos?
Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que tinha congelado no tempo. Depois passou as mãos pelo cabelo e murmurou:
— Eu devia ter desconfiado… O meu pai anda estranho há semanas. Mas nunca pensei…
A discussão começou ali. Primeiro baixinho, depois cada vez mais alto. A minha mãe entrou na cozinha para tentar acalmar-nos, mas só piorou as coisas.
— Isto é uma vergonha! — gritou ela. — A família do Miguel sempre foi de aparências! Só querem festa à custa dos outros!
— Não fales assim dos meus pais! — respondeu o Miguel, levantando-se de rompante.
— Então e agora? Quem vai pagar isto tudo? Achas justo a Filipa ficar com dívidas por causa dos teus convidados?
Eu tapei os ouvidos. Não queria ouvir mais nada. Só queria desaparecer.
A noite arrastou-se entre lágrimas e acusações. O meu pai, Manuel, tentou ser diplomático:
— Filha, se quiseres cancelar tudo… nós apoiamos-te. Não tens de casar amanhã só porque está tudo marcado.
Mas eu olhava para o vestido pendurado na porta do quarto e sentia um nó na garganta. Tantos meses a sonhar com este dia… E agora parecia tudo uma mentira.
O Miguel tentou ligar ao pai dele várias vezes nessa noite. Sem sucesso. A mãe dele mandou mensagens a pedir desculpa, a prometer que iam arranjar uma solução. Mas já era tarde demais.
De manhã, acordei com os olhos inchados e o coração pesado. Fui até à janela e vi a quinta ao longe, envolta em nevoeiro. Lembrei-me das palavras da minha avó: “Casamento molhado é casamento abençoado.” Mas naquele momento só sentia raiva.
O Miguel apareceu atrás de mim e abraçou-me em silêncio.
— Se quiseres cancelar tudo… eu compreendo — sussurrou ele.
— E tu? O que queres fazer?
Ele hesitou.
— Quero casar contigo. Mas não assim… Não com esta mágoa toda entre as famílias.
O telefone tocou. Era a minha tia Rosa:
— Filipa, ouvi dizer que houve problemas… Precisas de ajuda?
Expliquei-lhe tudo entre soluços. Ela ficou em silêncio durante uns segundos e depois disse:
— Filha, casamento não é só festa. É saber lidar com os problemas juntos. Se vocês se amam mesmo, vão dar a volta por cima.
Essas palavras ficaram-me na cabeça o resto do dia.
Ao meio-dia, reunimos as duas famílias na sala da casa dos meus pais. O ambiente era tenso; ninguém queria olhar nos olhos uns dos outros.
O pai do Miguel finalmente apareceu, cabisbaixo.
— Peço desculpa a todos… Falhei convosco. Devia ter dito logo que não conseguia pagar… Mas tive vergonha.
A minha mãe não resistiu:
— Vergonha devia ter tido antes de convidar tanta gente!
O Miguel levantou-se e falou pela primeira vez com firmeza:
— Chega! Isto não é culpa só dos meus pais ou dos teus… Nós também devíamos ter controlado melhor as coisas. Fomos ingénuos.
Olhei para ele e percebi que tinha razão. Tínhamos deixado os sonhos falarem mais alto do que a realidade.
Depois de muita discussão, decidimos cancelar a festa grande na quinta. Em vez disso, íamos casar só com os pais e irmãos presentes na igreja local. O resto seria resolvido depois.
A notícia espalhou-se pela família como fogo em mato seco. Uns ficaram chocados, outros aliviados por não terem de gastar dinheiro em prendas caras ou viagens longas.
No dia seguinte, vesti o meu vestido branco — simples mas bonito — e caminhei até à igreja de braço dado com o meu pai. O Miguel esperava-me no altar com os olhos marejados de lágrimas.
A cerimónia foi curta mas cheia de emoção. Quando trocámos votos, prometemos nunca mais deixar segredos ou dinheiro meterem-se entre nós.
No final do dia, sentámo-nos os dois num banco do jardim em frente à igreja. O sol punha-se atrás das árvores e eu encostei a cabeça ao ombro dele.
— Achas que um dia vamos conseguir perdoar as nossas famílias? — perguntei baixinho.
O Miguel sorriu tristemente:
— Talvez… Mas pelo menos aprendemos que o amor não se mede em festas nem em dinheiro.
Agora, meses depois desse dia caótico, olho para trás e pergunto-me: quantos casamentos acabam antes mesmo de começarem por causa das expectativas dos outros? Será que vale a pena sacrificar a paz por um sonho emprestado?