O Último Grito na Rua das Acácias – Como Uma Mulher Comum Mudou Tudo

— Não aguento mais, Miguel! — gritei, com a voz embargada, enquanto a loiça tremia nas minhas mãos. O meu marido olhou-me como se eu tivesse enlouquecido. O João, o nosso filho, levantou os olhos do telemóvel pela primeira vez em semanas, surpreso com o tom da minha voz. — Ou isto muda, ou eu vou-me embora.

O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Senti o coração a bater tão forte que quase me doía no peito. Durante anos, fui aquela mulher invisível, a mãe que resolve tudo, a esposa que engole sapos e sorri para não criar ondas. Mas naquele momento, já não conseguia mais fingir que estava tudo bem.

Lembro-me de ter olhado para a janela da cozinha, onde as luzes da rua das Acácias tremeluziam na noite fria de novembro. Quantas vezes desejei fugir dali? Quantas vezes sonhei com uma vida diferente, onde alguém me visse realmente? Mas sempre me convenci de que era egoísmo pensar em mim.

— Maria, estás a exagerar — disse o Miguel, finalmente. A voz dele era baixa, cansada, como se eu fosse apenas mais uma tarefa no fim do dia.

— Não estou a exagerar! — respondi, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. — Estou farta de ser invisível nesta casa! Farta de ser a empregada, a cozinheira, a mãe que ninguém ouve!

O João bufou e revirou os olhos. — Lá estás tu outra vez com os teus dramas…

Aquelas palavras foram como facas. Senti-me tão sozinha naquele instante que quase não conseguia respirar. Saí da cozinha e tranquei-me no quarto. Sentei-me na cama e abracei uma almofada, tentando abafar os soluços. Lembrei-me da minha mãe, da forma como ela também se anulou pelo meu pai e por nós. Sempre pensei que seria diferente.

Na manhã seguinte, acordei com o rosto inchado e os olhos vermelhos. O Miguel já tinha saído para o trabalho sem dizer uma palavra. O João estava na sala, de auscultadores nos ouvidos, completamente alheio ao mundo.

Preparei o pequeno-almoço em silêncio. Cada movimento parecia mecânico: pão na torradeira, café na chávena, leite para o João. Quando coloquei tudo na mesa, ele nem agradeceu.

— João — chamei, tentando manter a voz firme — precisamos de conversar.

Ele tirou um dos auscultadores e olhou para mim com impaciência.

— O que foi agora?

— Isto não pode continuar assim — disse-lhe. — Eu amo-te, és meu filho, mas não posso continuar a viver numa casa onde ninguém me respeita.

Ele encolheu os ombros e voltou ao telemóvel. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Peguei no casaco e saí de casa sem dizer mais nada.

Andei pelas ruas do bairro durante horas. Passei pela padaria da dona Rosa, onde costumava ir quando o João era pequeno. Ela sorriu para mim e perguntou se estava tudo bem. Quase chorei ali mesmo.

— Está tudo bem… — menti.

Mas não estava. Sentei-me num banco do jardim e olhei para as árvores despidas pelo outono. Lembrei-me dos tempos em que o Miguel me escrevia bilhetes de amor e o João me abraçava antes de dormir. Onde é que tudo se perdeu?

Quando voltei para casa, já era quase noite. O Miguel estava sentado à mesa da cozinha, com uma cerveja na mão. Olhou para mim sem expressão.

— Já voltaste? — perguntou.

Sentei-me à frente dele e respirei fundo.

— Miguel… Eu não sou feliz assim. Não posso continuar a viver nesta solidão dentro da nossa própria casa.

Ele ficou calado durante um longo momento. Depois pousou a cerveja e passou as mãos pelo rosto.

— Maria… Eu sei que tenho estado ausente. O trabalho… as contas… Eu também estou cansado.

— Mas eu também trabalho! Também estou cansada! Só que ninguém quer saber! — explodi novamente.

Ele olhou para mim com olhos tristes.

— O que queres que eu faça?

— Quero que me vejas! Que me ouças! Que sejas meu parceiro outra vez! — pedi-lhe, quase suplicando.

Naquela noite dormimos em silêncio, cada um virado para o seu lado da cama. Senti um vazio tão grande que parecia impossível de preencher.

Os dias seguintes foram um arrastar de silêncios e pequenas discussões. O João continuava fechado no seu mundo virtual; o Miguel mergulhava no trabalho e nas notícias da televisão. Eu sentia-me cada vez mais invisível.

Até ao dia em que recebi uma mensagem da minha irmã, a Ana: “Vens jantar cá hoje? Preciso de conversar.” Aceitei sem hesitar.

Na casa dela senti-me acolhida pela primeira vez em muito tempo. A Ana ouviu-me sem julgar, abraçou-me quando chorei e disse-me algo que nunca esquecerei:

— Maria, tu tens direito a ser feliz. Não deixes que ninguém te faça sentir menos do que és.

Naquela noite tomei uma decisão: ia lutar por mim mesma, mesmo que isso significasse abalar tudo à minha volta.

No dia seguinte sentei-me com o Miguel e o João à mesa da cozinha.

— Preciso de vos dizer uma coisa importante — comecei, com a voz firme apesar do medo. — Se isto não mudar… eu vou embora. Vou viver com a Ana até perceberem o valor que tenho nesta casa.

O Miguel ficou pálido; o João largou finalmente o telemóvel.

— Estás a falar a sério? — perguntou o meu marido.

— Nunca falei tão a sério na vida — respondi.

O João levantou-se abruptamente e saiu porta fora. O Miguel ficou ali sentado, sem saber o que dizer ou fazer.

Nessa noite fiz as malas. O João não voltou para casa até tarde; quando chegou, entrou no meu quarto sem bater à porta.

— Mãe… desculpa — murmurou ele, com os olhos marejados de lágrimas. — Eu não sabia… Eu pensei que estavas sempre ali…

Abracei-o com força e chorei com ele. Pela primeira vez em anos senti que ele me via realmente.

O Miguel apareceu à porta pouco depois.

— Maria… não vás embora. Eu prometo tentar mudar… Só preciso de ajuda para perceber como fazer isso.

Olhei para ele e vi o homem por quem me apaixonei há tantos anos atrás. Talvez ainda houvesse esperança para nós.

Decidi ficar mais uns dias para ver se as coisas mudavam mesmo. Começámos a ter conversas difíceis mas honestas; fomos juntos à psicóloga do centro de saúde; o João começou a ajudar mais em casa e até sugeriu fazermos um jantar em família todas as semanas.

Não foi fácil nem rápido. Houve recaídas, discussões feias, portas batidas. Mas aos poucos fomos encontrando um novo equilíbrio — um onde eu já não era invisível.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres portuguesas vivem assim todos os dias? Quantas gritam em silêncio dentro das suas próprias casas? Será preciso chegar ao limite para sermos finalmente ouvidas?