O número esquecido no calendário: um reencontro com o passado

— Não acredito que és tu, Inês. — A voz dele, rouca e hesitante, ecoou do outro lado da linha. Por um segundo, pensei que estava a sonhar. O telefone tremia na minha mão, e o cheiro a pó do velho calendário dos anos 90 ainda pairava no ar do meu pequeno escritório em Lisboa.

— Sim… sou eu. — respondi, quase num sussurro. — Desculpa ligar assim, depois de tantos anos. Encontrei o teu número por acaso…

— Por acaso? — Ele riu-se, mas havia tristeza no riso. — Eu estava mesmo a pensar em ti hoje. Sabes, às vezes acho que o destino gosta de brincar connosco.

Fechei os olhos. O destino. Quantas vezes culpei o destino por tudo o que perdi? Por tudo o que deixei para trás? O nome dele, Miguel, era uma ferida antiga, cicatrizada mas nunca esquecida. Lembrei-me das tardes de verão em Cascais, das promessas sussurradas à beira-mar, dos sonhos que fizemos juntos antes de a vida se intrometer.

— Como estás? — perguntei, tentando soar casual, mas a minha voz falhou.

— Sobrevivo. E tu?

— Também.

O silêncio caiu entre nós, pesado como uma manta molhada. Do outro lado da porta, ouvi a minha filha Leonor a discutir com o pai sobre os trabalhos de casa. A realidade puxava-me de volta, mas eu não queria largar aquele fio ténue que me ligava ao passado.

— Inês, porque ligaste? — A pergunta dele era direta, quase dura.

Respirei fundo. Porque liguei? Nem eu sabia ao certo. Talvez porque ultimamente tudo parecia desmoronar-se à minha volta: o casamento morno com o Rui, as discussões constantes em casa, a sensação de que a vida me tinha passado ao lado enquanto eu tentava ser tudo para todos menos para mim mesma.

— Senti saudades. De ti. De quem eu era antes.

Do outro lado ouvi um suspiro longo.

— Eu também senti tua falta. Muitas vezes perguntei-me como teria sido se tivéssemos tido coragem…

A palavra ficou suspensa: coragem. Faltou-nos coragem há trinta anos atrás. Quando os meus pais descobriram sobre nós e me proibiram de te ver porque eras “um rapaz sem futuro”, eu obedeci. Fui para Coimbra estudar Direito, como eles queriam. Tu ficaste em Lisboa a lutar pelos teus sonhos de músico. Nunca mais nos vimos.

— A vida não foi fácil para mim — disse ele, interrompendo os meus pensamentos. — Casei-me, tive filhos… mas nunca esqueci aquele verão.

Senti as lágrimas a arderem-me nos olhos. Eu também casei, também tive filhos. Mas nunca mais fui aquela rapariga cheia de esperança e vontade de mudar o mundo.

— Miguel… — comecei, mas fui interrompida pelo Rui a bater à porta.

— Inês! Precisas de ajudar a Leonor com Matemática!

Tapei o telefone com a mão e respondi:

— Já vou!

Voltei ao telefone:

— Tenho de ir…

— Espera! — pediu ele. — Não desligues assim. Podemos encontrar-nos? Só para conversar…

O meu coração disparou. Encontrar-me com ele? Depois de tudo?

— Não sei se é boa ideia…

— Por favor. Preciso de te ver, nem que seja só uma vez.

Hesitei. Mas algo dentro de mim — talvez aquela rapariga dos anos 90 — disse sim.

Marcámos para sábado seguinte, num café discreto em Belém. Passei a semana num turbilhão de emoções: culpa por mentir ao Rui, ansiedade pelo reencontro, medo do que poderia sentir ao ver o Miguel outra vez.

No sábado vesti-me como há muito não fazia: maquilhei-me com cuidado, escolhi um vestido azul que me fazia lembrar os dias felizes da juventude. Quando cheguei ao café, ele já lá estava. O cabelo grisalho, as rugas à volta dos olhos… mas o sorriso era o mesmo.

— Olá, Inês.

Sentei-me à frente dele e por um momento ficámos só a olhar um para o outro.

— Estás igual — disse ele.

Sorri, envergonhada.

Falámos durante horas: dos filhos, dos casamentos falhados (o dele já tinha acabado), das carreiras que nunca nos apaixonaram verdadeiramente. Rimos das nossas aventuras adolescentes e chorámos pelas oportunidades perdidas.

— Sabes — disse ele baixinho — nunca deixei de te amar.

O mundo parou naquele instante. Senti uma onda de emoções contraditórias: alegria, medo, culpa.

— Miguel… eu…

Ele pegou na minha mão por cima da mesa.

— Não quero estragar a tua vida. Só precisava que soubesses.

Fiquei sem palavras. O meu telemóvel vibrou: era uma mensagem do Rui a perguntar onde estava.

Levantei-me abruptamente.

— Tenho de ir.

Ele levantou-se também.

— Desculpa se te magoei ao trazer isto tudo ao de cima.

Abanei a cabeça.

— Não… precisava disto também. Adeus, Miguel.

Saí do café com o coração aos saltos e lágrimas nos olhos. Caminhei até ao carro sem saber quem era ou o que queria da vida. Quando cheguei a casa, Rui estava à minha espera na sala.

— Onde estiveste?

Olhei para ele e vi o homem com quem partilhei vinte anos da minha vida: bom pai, trabalhador… mas será que alguma vez fui verdadeiramente feliz?

— Preciso de pensar — disse apenas e subi para o quarto.

Nessa noite não dormi. Revivi cada momento do passado e do presente: as escolhas feitas por medo ou obrigação, os sonhos abandonados na prateleira mais alta da memória.

No dia seguinte sentei-me à mesa com Rui e contei-lhe tudo: sobre o telefonema, sobre o encontro com Miguel, sobre as dúvidas que me assombravam há anos.

Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Depois disse:

— Sempre soube que havia algo em ti que nunca consegui alcançar. Se precisares de ir atrás disso… eu compreendo.

Chorei como há muito não chorava. Pela primeira vez em anos senti-me livre para ser honesta comigo mesma.

Hoje escrevo esta história sem saber como vai acabar. Não sei se terei coragem de mudar tudo ou se vou continuar neste caminho seguro mas vazio. Só sei que reencontrar Miguel me obrigou a olhar para dentro e perguntar:

Será que ainda temos tempo para sermos felizes? E vocês? Já tiveram coragem de enfrentar os fantasmas do vosso passado?