Fechei os olhos para a traição dele – até cair na rua e descobrir quem realmente estava ao meu lado

— Não me venhas com desculpas, Miguel! — gritei, a voz embargada, enquanto ele tentava justificar mais uma noite fora de casa. O relógio da cozinha marcava quase duas da manhã e o cheiro a perfume barato ainda pairava no ar. — Eu estava a trabalhar, Ana. Já te disse mil vezes — respondeu ele, desviando o olhar, incapaz de me encarar. Senti o peito apertar, uma mistura de raiva e tristeza. Quantas vezes mais iria eu fingir que acreditava?

A verdade é que já não era só o cheiro, nem as mensagens apagadas do telemóvel ou as desculpas esfarrapadas. Era o vazio entre nós, o silêncio durante o jantar, a ausência dele nas pequenas coisas. Mas eu continuava ali, agarrada à ideia de que era melhor para os nossos filhos, para a nossa família. O Miguel sempre fora um bom pai — pelo menos era isso que eu dizia a mim mesma para justificar tudo o resto.

Na manhã seguinte, acordei com os olhos inchados e uma dor surda no peito. A casa estava silenciosa; os miúdos já tinham ido para a escola e o Miguel saíra cedo, como sempre. Preparei-me para mais um dia no escritório da imobiliária onde trabalhava há quase dez anos. O caminho até ao metro era sempre igual: ruas apressadas, vizinhos apáticos, Lisboa ainda meio adormecida.

Foi numa dessas manhãs que tudo mudou. Estava distraída, a pensar na discussão da noite anterior, quando tropecei numa pedra solta do passeio. Senti o mundo girar e, antes de perceber o que se passava, estava estendida no chão, com uma dor aguda no tornozelo e sangue a escorrer do joelho.

As pessoas passavam por mim como se fosse invisível. Uns olhavam de relance, outros desviavam-se apressados. Só quando ouvi uma voz familiar é que percebi que não estava sozinha.

— Dona Ana? Está bem? — Era a Dona Lurdes, a vizinha do terceiro andar, sempre pronta a ajudar. Sem hesitar, ajoelhou-se ao meu lado e chamou um táxi para me levar ao hospital.

No hospital, entre exames e radiografias, tentei ligar ao Miguel. Chamei-o três vezes. Ele não atendeu nenhuma. Enviei-lhe uma mensagem: “Caí na rua. Estou no hospital de Santa Maria.” Esperei. Nada.

A Dona Lurdes ficou comigo até eu ser atendida. Quando finalmente consegui falar com alguém da família, foi a minha irmã, Teresa, quem apareceu primeiro. Entrou no quarto com um ar preocupado e abraçou-me sem dizer palavra.

— O Miguel não veio? — perguntou ela baixinho.

Abanei a cabeça. Senti as lágrimas ameaçarem cair outra vez.

— Ele deve estar ocupado… — tentei justificar, mas nem eu acreditava nisso.

Fiquei internada dois dias por causa da fratura no tornozelo. Durante esse tempo, só vi o Miguel uma vez — entrou no quarto apressado, olhou para mim como se fosse uma estranha e saiu logo de seguida para atender uma chamada.

— Isto não pode continuar assim — disse-me a Teresa nessa noite, sentada ao pé da minha cama. — Tu mereces mais do que isto.

Olhei para ela e vi nos olhos dela aquilo que eu própria já sabia há muito tempo: estava sozinha naquele casamento.

Quando voltei para casa, de muletas e com o orgulho ferido, percebi quem realmente estava ao meu lado. A Dona Lurdes trazia-me sopa quente todos os dias; a Teresa vinha ajudar-me com as crianças; até o senhor António do café do bairro se ofereceu para ir às compras por mim. O Miguel? Passava cada vez menos tempo em casa e quando lá estava era como se não estivesse.

Uma noite, depois de deitar os miúdos, sentei-me na sala escura e esperei por ele. Quando entrou, já passava da meia-noite.

— Precisamos de conversar — disse-lhe sem rodeios.

Ele suspirou e sentou-se à minha frente, com aquele ar cansado de quem já não quer lutar.

— Eu sei que tens outra pessoa — disse-lhe finalmente. — Já não consigo fingir que não vejo.

O silêncio dele confirmou tudo o que eu temia.

— Ana… Eu… — começou ele, mas eu levantei a mão para o interromper.

— Não digas nada. Só quero saber uma coisa: ainda gostas de mim? Ainda queres esta família?

Ele baixou os olhos e ficou calado durante tanto tempo que pensei que nunca mais fosse responder.

— Não sei — murmurou por fim.

Senti um vazio imenso dentro de mim. Tudo aquilo por que tinha lutado durante anos desmoronava-se ali mesmo à minha frente.

Naquela noite não dormi. Pensei nos meus filhos, na minha vida inteira dedicada a um casamento que já não existia. Pensei em todas as vezes que pus as necessidades dos outros à frente das minhas próprias. E percebi que tinha chegado ao limite.

No dia seguinte, pedi à Teresa para ficar com as crianças e fui até à praia da Costa da Caparica sozinha. Sentei-me na areia fria e deixei as lágrimas correrem livremente pela primeira vez em muito tempo.

Lembrei-me da Ana de vinte anos atrás: sonhadora, cheia de planos e certezas. Onde é que ela tinha ficado? Em que momento é que me perdi de mim mesma?

Quando voltei para casa nessa noite, sabia o que tinha de fazer. Chamei o Miguel à sala e disse-lhe calmamente:

— Quero separar-me. Não quero mais viver assim.

Ele olhou para mim surpreendido, talvez porque nunca pensou que eu tivesse coragem de tomar aquela decisão.

— Tens a certeza? — perguntou ele.

— Tenho — respondi sem hesitar. Pela primeira vez em muitos anos senti-me leve, como se tivesse tirado um peso enorme dos ombros.

Os meses seguintes foram difíceis. Houve discussões sobre tudo: casa, guarda dos filhos, dinheiro. O Miguel tentou convencer-me a voltar atrás várias vezes; chorou, implorou, prometeu mudar. Mas eu sabia que já não havia volta a dar.

A Teresa esteve sempre ao meu lado. A Dona Lurdes continuou a trazer-me sopa e palavras de conforto. Os meus filhos adaptaram-se melhor do que eu esperava; eram mais resilientes do que eu imaginava.

Hoje olho para trás e vejo tudo com outros olhos. Sei que fechei os olhos à traição dele durante demasiado tempo porque tinha medo de ficar sozinha — mas descobri que nunca estive verdadeiramente sozinha. Havia pessoas à minha volta prontas a ajudar-me; só precisei de abrir os olhos para as ver.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres continuam presas em relações vazias por medo do desconhecido? Quantas vezes sacrificamos a nossa felicidade em nome de uma família que já não existe? Será que vale mesmo a pena viver uma mentira só para manter as aparências?