Disse à Dona Maria que já não podia ser mais a sua rapariga para tudo: A minha verdade sufocada durante anos
— Não posso mais, Dona Maria. — As palavras saíram-me num sussurro rouco, quase como se pedissem desculpa por existirem. Ela olhou para mim por cima dos óculos, o avental manchado de sopa a tremer-lhe nas mãos. — Como assim, menina Ana? — perguntou, a voz dela tão frágil como o corpo.
Foi nesse instante que senti o peso de todos os anos em que fui a rapariga para tudo. Desde que o meu marido me deixou com dois filhos pequenos e uma casa por acabar, Dona Maria foi a minha vizinha, a minha confidente e, por vezes, quase uma mãe. Mas também foi quem me pedia para ir buscar o pão, para lhe limpar as janelas, para lhe arranjar o telemóvel, para lhe ouvir as mágoas da filha ausente. E eu fui dizendo sempre sim. Porque era mais fácil dizer sim do que enfrentar o vazio do meu próprio silêncio.
Naquela manhã, acordei com o corpo dorido e a cabeça pesada. O meu filho mais novo tinha tido febre durante a noite e eu mal dormira. O frigorífico estava quase vazio e o dinheiro não chegava até ao fim do mês. Quando bati à porta da Dona Maria para lhe levar o leite, como fazia todas as manhãs, ela pediu-me para lhe arranjar o aquecedor. E eu senti uma raiva surda a crescer dentro de mim.
— Não posso mais — repeti, desta vez mais firme. — Preciso de cuidar dos meus filhos. Preciso de cuidar de mim.
Ela ficou calada durante uns segundos que pareceram horas. Depois, pousou o avental na cadeira e sentou-se à mesa da cozinha.
— A minha filha vem cá este fim de semana — disse, como se isso resolvesse tudo.
A filha dela, a Teresa, vinha de Lisboa uma vez por mês. Chegava com malas cheias de roupa cara e um sorriso cansado. Ficava uma tarde, tirava umas fotografias com a mãe para pôr no Facebook e ia-se embora antes do jantar. Eu ficava sempre com um nó na garganta ao vê-las juntas — mãe e filha a fingirem que tudo estava bem.
— A Teresa não pode ajudar mais? — perguntei, sem conseguir esconder o tom amargo.
Dona Maria encolheu os ombros.
— Ela tem a vida dela…
Olhei em volta: as paredes amarelecidas pelo tempo, os retratos antigos pendurados tortos, o cheiro a sopa de feijão entranhado em tudo. Senti-me presa naquela casa como me sentia presa na minha própria vida.
Quando voltei para casa, os meus filhos estavam sentados no sofá a ver desenhos animados. O mais velho olhou para mim com olhos tristes.
— Mãe, hoje vais brincar connosco?
Sentei-me ao lado deles e abracei-os com força. Senti-me culpada por todas as vezes em que lhes disse “agora não posso” porque tinha de ajudar Dona Maria ou outra pessoa qualquer. Sempre pus os outros à frente de mim — talvez porque me ensinaram que era isso que uma mulher decente fazia.
À noite, enquanto lavava a loiça, ouvi vozes vindas da rua. Fui à janela e vi Dona Maria e Teresa a discutirem junto ao portão.
— Não percebes que preciso de ti? — gritava Dona Maria.
— Eu tenho trabalho! Não posso largar tudo para vir aqui sempre que te apetece! — respondeu Teresa, atirando as mãos ao ar.
Senti um aperto no peito. Era como se estivesse a ver um espelho distorcido da minha própria relação com a minha mãe. Também ela me cobrava presenças e cuidados que eu já não tinha para dar.
No dia seguinte, Teresa bateu-me à porta.
— Ana, podemos falar?
Fomos até ao quintal das traseiras. Ela acendeu um cigarro com mãos trémulas.
— A minha mãe está muito magoada contigo — disse sem rodeios.
— E eu estou exausta — respondi. — Não sou filha dela. Tenho os meus próprios problemas.
Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez desde que nos conhecíamos.
— Sabes… às vezes invejo-te. Tu estás aqui todos os dias. Eu fujo sempre que posso.
Ficámos em silêncio durante um bocado. O vento fazia as folhas das laranjeiras dançarem no chão.
— Porque é que nunca ficas mais tempo? — perguntei finalmente.
Ela deu uma gargalhada triste.
— Porque tenho medo de me perder aqui. De ficar presa nesta aldeia como a minha mãe ficou. Como tu ficaste.
As palavras dela bateram-me como um murro no estômago. Era verdade: eu estava presa ali, entre os desejos dos outros e as minhas próprias necessidades sufocadas.
Nessa noite sonhei com a minha mãe. Estávamos as duas na cozinha da casa onde cresci. Ela ralhava comigo porque não tinha posto sal suficiente na sopa. Eu tentava explicar-lhe que estava cansada, mas ela não queria ouvir. Acordei a chorar baixinho para não acordar os miúdos.
Durante os dias seguintes, evitei passar pela casa da Dona Maria. Sentia-me culpada mas também aliviada. Comecei a ter tempo para mim: li um livro antigo que estava esquecido na prateleira; pintei as unhas pela primeira vez em anos; sentei-me no jardim a ver os meus filhos brincarem até ao pôr-do-sol.
Mas nem tudo era paz. No café da vila começaram os murmúrios:
— Ouviste dizer que a Ana deixou Dona Maria sozinha?
— Que vergonha… depois de tudo o que ela fez por ela!
As palavras chegavam-me aos ouvidos como agulhas afiadas. Senti-me julgada por toda a gente — menos pelos meus filhos, que me abraçavam com mais força do que nunca.
Uma tarde, Dona Maria apareceu à minha porta com um saco de laranjas na mão.
— Vim pedir desculpa — disse baixinho. — Fui egoísta contigo. Esqueci-me que também tens uma vida.
Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto sem conseguir responder logo.
— Eu também peço desculpa… — murmurei finalmente. — Só queria ser boa para toda a gente… mas acabei por me perder de mim mesma.
Ela sorriu e abraçou-me como só as mães sabem fazer.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem assim — presas entre o dever e o desejo de liberdade? Quantas vezes dizemos sim aos outros quando devíamos dizer sim a nós mesmas? Talvez nunca haja respostas fáceis… Mas será que algum dia aprendemos verdadeiramente a pôr limites sem culpa?