Entre o Lar dos Sonhos e o Dever Familiar: O Meu Dilema
— Ana, não podes ser tão egoísta! — gritou o Rui, com os olhos vermelhos de raiva e cansaço. — O meu pai precisa de nós agora! Não vês que ele pode não aguentar muito mais?
Fiquei ali, parada no meio da sala, com as mãos trémulas e o coração aos pulos. O cheiro do café frio misturava-se com o silêncio pesado que se seguiu. Olhei para a fotografia dos meus pais na estante — a minha mãe sorria, como se me dissesse que tudo ia correr bem. Mas não ia. Não desta vez.
Desde pequena que sonhava com uma casa só minha. Cresci num T2 em Almada, sempre a ouvir os vizinhos do lado e a partilhar o quarto com a minha irmã, a Joana. Quando a minha mãe me disse, há dois meses, que tinha conseguido juntar algum dinheiro para me ajudar na entrada de um apartamento, senti-me finalmente a respirar. Era o nosso momento. O meu e do Rui. O início da nossa família.
Mas depois veio a notícia: o meu sogro, o senhor Manuel, estava doente. Cancro no pulmão. O Rui ficou devastado. Eu também, claro — sempre gostei do meu sogro, homem simples, trabalhador dos estaleiros navais de Setúbal, sempre com uma piada pronta. Mas agora tudo era diferente.
— Ana, por favor — insistiu o Rui, mais calmo mas com a voz embargada. — O meu pai não tem ninguém. A minha irmã está em França, nem sequer pode vir cá. Só nos tem a nós.
Sentei-me no sofá, puxando as pernas para cima como fazia em miúda quando tinha medo. — Rui, eu entendo… mas este dinheiro é da minha mãe. Ela poupou uma vida inteira para me dar isto. Não posso simplesmente…
Ele interrompeu-me: — E achas que eu não percebo? Mas se não ajudarmos agora, como é que vamos viver connosco próprios depois?
As noites tornaram-se longas e frias. O Rui quase não dormia, passava horas ao telefone com médicos e com a irmã, a tentar perceber se havia alguma esperança. Eu sentia-me cada vez mais sozinha naquela casa alugada, onde as paredes pareciam encolher à medida que os dias passavam.
A minha mãe ligava-me todos os dias. — Filha, já viste aquele apartamento em Corroios? Tem uma varanda linda! — dizia ela, cheia de entusiasmo.
Eu respondia sempre com evasivas. Não tinha coragem de lhe contar o dilema em que estava metida.
Uma noite, depois de mais uma discussão acesa com o Rui, fui até à varanda e chorei baixinho para ninguém ouvir. Senti-me injusta por desejar tanto aquela casa enquanto o senhor Manuel lutava pela vida num hospital frio e impessoal.
No domingo seguinte fomos visitá-lo. Estava magro, os olhos fundos mas ainda com aquele brilho teimoso.
— Então, minha nora preferida? — tentou brincar.
Sorri-lhe, mas sentia um nó na garganta.
O Rui saiu para falar com o médico e fiquei sozinha com o senhor Manuel.
— Ana… — disse ele baixinho — não deixes que esta doença estrague a vossa vida. O Rui é bom rapaz, mas às vezes esquece-se de viver.
Fiquei sem palavras. Ele percebeu tudo sem eu precisar de explicar.
Quando voltámos para casa, o Rui estava ainda mais tenso.
— A médica disse que há um tratamento novo… mas é caro. Muito caro. — Olhou para mim como quem pede desculpa por existir.
— E se pedíssemos um empréstimo? — arrisquei.
Ele abanou a cabeça: — Já estamos até ao pescoço com dívidas do carro e do casamento…
A pressão aumentava todos os dias. A minha irmã dizia-me para pensar em mim pela primeira vez na vida.
— Ana, tu sempre foste a boazinha da família! Quando é que vais perceber que também tens direito a ser feliz?
Mas como podia ser feliz sabendo que podia salvar uma vida?
Uma noite ouvi o Rui chorar na casa de banho. Nunca o tinha visto assim. Senti-me miserável por hesitar.
No dia seguinte tomei uma decisão: ia falar com a minha mãe.
— Mãe… preciso de te contar uma coisa — comecei, com a voz trémula.
Ela ouviu tudo em silêncio. No fim, suspirou fundo.
— Filha… eu dei-te este dinheiro porque quero ver-te feliz. Mas também sei o que é perder alguém cedo demais. Se sentes que deves ajudar o teu sogro… faz isso. A casa pode esperar.
Chorei no colo dela como quando era criança.
Voltei para casa decidida a contar ao Rui que ia abdicar do sonho da casa para ajudar o pai dele.
Mas quando entrei na sala encontrei-o sentado no escuro.
— Ana… estive a pensar — disse ele devagar — e não posso pedir-te isto. Não é justo contigo nem com a tua mãe. O meu pai nunca me perdoaria se soubesse que sacrificámos tudo por ele.
Ficámos ali abraçados muito tempo, sem saber o que fazer.
Os dias passaram e acabámos por usar parte do dinheiro para ajudar no tratamento do senhor Manuel e guardar outra parte para a entrada da casa — menos do que precisávamos, mas suficiente para manter o sonho vivo.
O senhor Manuel melhorou um pouco, mas nunca voltou a ser o mesmo. Quando morreu, meses depois, deixou-nos uma carta:
“Queridos Ana e Rui,
Não deixem que as dificuldades vos afastem do vosso caminho. A vida é feita de escolhas difíceis, mas nunca deixem de sonhar.”
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito diferente? Teria sido mais feliz se tivesse escolhido só por mim? Ou será que a felicidade está mesmo nestes sacrifícios silenciosos?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde iriam pelo vosso sonho… ou pela vossa família?