A Casa Que Nos Separou: Uma História de Família Portuguesa
— Mãe, precisamos falar sobre a casa. — A minha voz treme, mas tento manter-me firme. O cheiro do café acabado de fazer mistura-se com o frio húmido das paredes antigas. A minha mãe, Dona Teresa, está sentada à mesa, as mãos enrugadas apertando uma chávena como se fosse um talismã.
Ela não responde de imediato. O relógio de parede marca sete da manhã, mas parece que o tempo parou ali, entre nós dois. O silêncio pesa mais do que qualquer palavra.
— João, esta casa é tudo o que me resta do teu pai. — Finalmente, ela fala, a voz baixa e rouca. — Não posso simplesmente vendê-la como se fosse um velho móvel.
Sinto um nó na garganta. Lembro-me do meu pai, Manuel, sentado naquela mesma cadeira, a rir-se das minhas travessuras de criança. Mas agora tudo mudou. A minha mulher, Sofia, está grávida e precisamos de um lugar nosso. O salário de professor mal chega para pagar as contas e a casa onde vivemos é pequena demais para três.
— Mãe, eu entendo… Mas tu vives aqui sozinha. A casa está a cair aos bocados. Olha para as infiltrações no teto! — Aponto para a mancha escura acima do fogão. — Não seria melhor ires viver com a tia Rosa em Lisboa? Lá estarias acompanhada e em segurança.
Ela levanta os olhos para mim, magoados.
— E tu? Vais abandonar-me também? Como o teu irmão fez?
O nome do meu irmão, Pedro, paira no ar como uma sombra. Ele foi para Inglaterra há cinco anos e raramente telefona. Desde então, tudo recaiu sobre mim: as compras, as idas ao médico, as pequenas reparações que nunca acabam.
— Não te quero abandonar, mãe. Só quero que todos fiquemos bem. — Tento controlar as lágrimas. — Eu e a Sofia precisamos deste dinheiro para começar de novo. Tu mereces paz e companhia.
Ela abana a cabeça, teimosa.
— Esta casa é o meu mundo. Aqui vivi com o teu pai quarenta anos. Aqui vi vocês crescerem. Não percebes?
Oiço passos no corredor. Sofia aparece à porta, com os olhos inchados de chorar durante a noite. Aproxima-se de mim e segura-me a mão.
— Dona Teresa… — começa ela, hesitante — Nós só queremos o melhor para todos. O João está a sofrer com isto.
A minha mãe olha para Sofia como se visse uma estranha. Sempre foi fria com ela, talvez por ciúmes ou medo de perder o filho.
— O melhor para todos? E eu? Alguém pensa em mim?
O tom dela corta como uma faca. Sinto-me dividido entre duas mulheres que amo de formas diferentes, mas igualmente intensas.
De repente, ouve-se um estrondo vindo do sótão. Corremos os três escadas acima e encontramos uma viga caída, espalhando pó e pedaços de madeira pelo chão.
— Vês? — grito eu, exasperado. — Isto não é seguro! Qualquer dia acontece uma tragédia!
A minha mãe senta-se no degrau, derrotada.
— Talvez Deus esteja a dar-me um sinal… — murmura.
Descemos em silêncio. O telefone toca; é o Pedro. Atendo com mãos trémulas.
— João? Está tudo bem?
— Não, Pedro. A casa está a desmoronar-se e a mãe recusa-se a sair daqui. Preciso que fales com ela.
Do outro lado da linha, o meu irmão suspira.
— Eu não posso voltar agora… Tenho trabalho… Mas talvez possamos vender e arranjar-lhe um apartamento pequeno aí perto.
Passo o telefone à mãe. Ela ouve o Pedro em silêncio e depois devolve-mo sem dizer palavra.
Sofia tenta animar-me:
— Se calhar devíamos procurar ajuda profissional… Um mediador familiar?
Abano a cabeça. Em Portugal, falar dos problemas familiares fora de casa ainda é tabu para muitos da geração da minha mãe.
Os dias passam entre discussões e silêncios pesados. A tensão cresce; mal consigo dormir. Uma noite, ouço soluços vindos do quarto da minha mãe. Entro devagar e vejo-a sentada na cama com uma caixa de fotografias antigas.
— Olha para isto… — diz ela, mostrando-me uma foto do meu pai jovem ao lado dela no jardim da casa. — Como posso deixar tudo isto para trás?
Sento-me ao lado dela e abraço-a pela primeira vez em meses.
— Não vais deixar nada para trás, mãe. As memórias vêm connosco onde quer que estejamos.
Ela chora baixinho no meu ombro.
No dia seguinte, decido agir. Marco uma reunião com um agente imobiliário local, o Sr. António, homem de confiança da aldeia.
— Dona Teresa — diz ele com voz calma — Compreendo o seu apego à casa. Mas pense no futuro do seu filho e do seu neto que aí vem…
A minha mãe olha para mim e depois para Sofia, que segura a barriga já saliente.
— E se eu não me adaptar noutro sítio? E se me sentir sozinha?
Sofia ajoelha-se ao lado dela:
— Prometo que vamos visitá-la todos os dias. E pode vir passar temporadas connosco quando quiser.
A minha mãe olha-nos nos olhos pela primeira vez em muito tempo e vejo ali uma faísca de esperança misturada com medo.
Na semana seguinte, assina-se o contrato de venda da casa. No dia da mudança, todos choramos: eu pela infância perdida; ela pelo fim de uma era; Sofia por ver finalmente uma luz ao fundo do túnel.
Instalamos Dona Teresa num pequeno apartamento perto do nosso novo lar em Vila Verde. Ao princípio custa-lhe adaptar-se: sente falta do cheiro da terra molhada no quintal, dos vizinhos antigos, do som dos sinos da igreja ao domingo de manhã.
Mas aos poucos começa a sorrir outra vez. Faz amizade com a vizinha do lado, Dona Amélia; inscreve-se nas aulas de bordado na junta de freguesia; até começa a usar o telemóvel para falar com o Pedro por videochamada.
Quando nasce a nossa filha Matilde, levo-a ao colo até ao apartamento da avó. Dona Teresa pega nela com mãos trémulas mas firmes e sorri como nunca antes vi.
— Afinal… talvez tenha sido isto que Deus quis para mim — diz ela baixinho.
Agora olho para trás e penso: quantas famílias portuguesas não vivem dramas parecidos? Quantas casas guardam segredos e dores antigas? Será que fizemos mesmo o melhor? Ou será que há feridas que nunca saram completamente?