Foste-te embora para eu poder nascer – A história de uma mulher portuguesa sobre infertilidade, expectativas familiares e recomeço
— Não aguento mais, Inês. Não é só por não termos filhos… é tudo. Sinto-me preso. — As palavras do Miguel ecoaram na sala de jantar, misturando-se com o cheiro do bacalhau à Brás que eu tinha acabado de servir. Fiquei ali, de pé, com a colher na mão, sem saber se chorava ou gritava. O silêncio caiu pesado entre nós, só interrompido pelo tique-taque do relógio da parede.
Durante anos, tentei convencer-me de que o amor bastava. Que as noites passadas em hospitais, as injeções diárias e as esperanças renovadas a cada ciclo valiam a pena. Que um dia, a nossa casa se encheria dos risos de uma criança. Mas agora, tudo parecia um teatro cruel.
Lembro-me da primeira vez que ouvi a palavra “infertilidade” dita pelo médico, no Hospital de Santa Maria. Miguel apertou-me a mão com força, mas o olhar dele já estava distante. A minha mãe, D. Teresa, nunca foi de grandes carinhos, mas nesse dia fez questão de me lembrar: — Na nossa família nunca houve problemas destes. — Como se fosse culpa minha.
Os meses passaram e cada tentativa falhada era mais um prego no caixão do nosso casamento. As conversas com Miguel tornaram-se monossilábicas. A minha sogra, D. Lurdes, fazia questão de me perguntar em cada almoço de domingo: — Então, novidades? — E eu sorria, fingindo que não percebia o veneno por trás da pergunta.
A pressão era insuportável. No trabalho, as colegas falavam dos filhos, das festas de aniversário e das birras matinais. Eu sorria e participava nas conversas, mas por dentro sentia-me invisível. Uma vez, a Ana, minha colega mais chegada, disse-me baixinho: — Não ligues ao que dizem. Tu és muito mais do que isso. — Mas como acreditar nisso quando tudo à minha volta gritava o contrário?
O Miguel começou a chegar mais tarde a casa. Dizia que era do trabalho, mas eu sabia que era mentira. Uma noite, vi uma mensagem no telemóvel dele: “Precisas de falar? Estou aqui.” O nome era Marta. Não quis saber mais. Não tinha forças para mais uma batalha.
A gota de água foi naquele jantar fatídico. Quando ele disse que ia embora, senti o chão fugir-me dos pés. — Vais deixar-me por não conseguir dar-te um filho? — perguntei-lhe, com a voz embargada.
Ele hesitou antes de responder: — Não é só isso… mas também é isso.
Depois disso, os dias passaram-se em piloto automático. Acordava, ia trabalhar, voltava para casa vazia e chorava até adormecer. A minha mãe ligava todos os dias: — Tens de ser forte, Inês. — Mas eu só queria desaparecer.
Um dia, decidi sair de Lisboa e ir passar uns tempos à casa dos meus avós em Évora. Precisava de ar puro e distância de tudo o que me lembrava do fracasso. Foi lá que comecei a escrever um diário. Escrevia sobre a dor, sobre os sonhos desfeitos e sobre a raiva que sentia por mim própria.
Certa tarde, enquanto caminhava pelos campos dourados do Alentejo, encontrei a Dona Amélia, vizinha dos meus avós desde sempre. Sentou-se ao meu lado num banco de pedra e disse:
— Sabes, Inês… também perdi um filho antes de o ter nos braços. Nunca contei a ninguém. Mas aprendi que há muitas formas de ser mãe nesta vida.
As palavras dela ficaram comigo durante dias. Comecei a olhar para mim com menos dureza. Voltei a Lisboa com outra energia. Inscrevi-me como voluntária numa associação que apoia crianças em risco. Pela primeira vez em anos, senti-me útil.
A minha relação com a família continuava tensa. A minha mãe não entendia porque é que eu não “tentava outra vez” ou porque não procurava outro homem “que quisesse mesmo uma família”. O meu pai limitava-se a acenar com a cabeça e a esconder-se atrás do jornal.
Um dia, durante um almoço de família, perdi a paciência:
— Chega! Não sou menos mulher por não ser mãe biológica! E se não conseguem aceitar isso, então talvez seja melhor cada um seguir o seu caminho.
Houve um silêncio constrangedor à mesa. A minha irmã mais nova olhou para mim com lágrimas nos olhos e disse:
— Desculpa… nunca percebi o quanto te estava a magoar com as minhas perguntas.
A partir desse dia, comecei a reconstruir pontes com quem realmente queria estar ao meu lado.
O Miguel casou-se com a Marta dois anos depois do nosso divórcio. Tiveram gémeos logo no primeiro ano. Vi as fotos no Facebook e senti uma pontada no peito — não de inveja, mas de luto pelo futuro que nunca tive.
Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Campo de Ourique. Tenho plantas na varanda e livros espalhados pela casa. Continuo voluntária e ajudo crianças que precisam de colo e atenção. Às vezes pergunto-me se algum dia vou voltar a apaixonar-me ou se vou aprender a amar esta solidão escolhida.
Ainda dói quando vejo mães com filhos no parque ou quando alguém me pergunta se tenho filhos e respondo que não. Mas aprendi que há muitas formas de nascer outra vez — às vezes é preciso perder tudo para nos encontrarmos.
E vocês? Acham que todas as feridas saram mesmo ou há dores que ficam para sempre escondidas dentro de nós?