Excluída do Casamento da Minha Enteada: Fui Alguma Vez Parte Desta Família?
— Catarina, não te esqueças de passar no supermercado antes de voltares para casa — disse o meu marido, António, com aquele tom apressado que usava sempre que queria evitar uma conversa mais profunda.
Olhei para ele, sentada à mesa da cozinha, com o envelope branco ainda fechado nas mãos. O nome escrito na caligrafia elegante era o dele. Só dele. O convite para o casamento da Beatriz, a filha dele, a minha enteada. Não havia menção ao meu nome. Nem sequer um “e família”. O silêncio entre nós era pesado, quase sufocante.
— António, recebeste o convite da Beatriz? — perguntei, tentando manter a voz firme.
Ele hesitou, desviando o olhar para a janela.
— Sim… chegou hoje. — Afastou-se para ir buscar o casaco, como se isso pudesse encerrar o assunto.
— E eu? Não fui convidada? — A pergunta saiu mais baixa do que eu queria, quase um sussurro.
Ele parou, de costas para mim. — Catarina… sabes como são estas coisas. A Beatriz quer um casamento pequeno, só família próxima…
Senti uma pontada no peito. “Só família próxima.” Depois de dez anos a tentar ser parte desta família, era assim que me viam? Uma estranha?
Lembrei-me do primeiro dia em que conheci a Beatriz. Tinha apenas catorze anos, olhos grandes e desconfiados. O António apresentou-me como “uma amiga”, e só meses depois é que me permitiu entrar verdadeiramente na vida deles. Tentei de tudo: jantares especiais, conversas longas sobre os sonhos dela, até ajudei com os trabalhos de casa e fui buscar-lhe vestidos para o baile da escola. Mas havia sempre uma barreira invisível entre nós.
A mãe da Beatriz, a Teresa, nunca facilitou as coisas. Sempre que nos cruzávamos nas reuniões da escola ou nos aniversários, fazia questão de me ignorar ou lançar olhares frios. Uma vez ouvi-a dizer à Beatriz:
— Lembra-te, só tens uma mãe.
Essas palavras ecoaram em mim durante anos. Tentei não me deixar afetar, mas era impossível não sentir que estava sempre a mais.
Naquela noite, depois do jantar, sentei-me no sofá com uma chávena de chá nas mãos trémulas. O António estava no escritório, provavelmente a enviar mensagens à filha sobre os preparativos do casamento. Peguei no telemóvel e abri o WhatsApp. O grupo da família estava cheio de mensagens animadas sobre o grande dia: “Mal posso esperar!”, “Vai ser lindo!”, “A Beatriz vai estar radiante!”. Eu lia tudo em silêncio, sem coragem de escrever nada.
De repente, recebi uma mensagem privada da Beatriz:
— Olá Catarina. Espero que estejas bem. Queria agradecer por tudo o que fizeste por mim ao longo dos anos. Sei que nem sempre fui fácil…
O coração bateu mais rápido. Continuei a ler:
— Mas este dia é muito importante para mim e quero que seja só com as pessoas mais próximas do meu sangue. Espero que entendas.
Fiquei ali sentada, imóvel. As lágrimas começaram a cair sem aviso. “As pessoas mais próximas do meu sangue.” Era isso que eu era? Uma estranha? Uma intrusa?
No dia seguinte, tentei falar com António.
— Achas isto justo? — perguntei-lhe, a voz embargada.
Ele suspirou, cansado.
— Catarina… não compliques. É o dia dela. Não vale a pena criar problemas agora.
— Não vale a pena? — repeti, incrédula. — Passei anos a tentar ser parte desta família! Fui eu que estive lá quando ela chorou pelo primeiro namorado, fui eu que lhe fiz sopa quando esteve doente! E agora sou descartável?
Ele não respondeu. Limitou-se a sair de casa, deixando-me sozinha com o eco das minhas próprias palavras.
Os dias seguintes foram um tormento. A casa parecia maior e mais fria do que nunca. O António evitava-me, passava horas fora ou fechado no escritório. Os preparativos para o casamento enchiam as redes sociais: provas de vestido, escolha do bolo, ensaios da cerimónia… Tudo sem mim.
Uma tarde, decidi ir até ao café onde costumava encontrar-me com a minha amiga Inês.
— Catarina, tens de te valorizar — disse ela, apertando-me a mão por cima da mesa. — Não podes deixar que te tratem assim.
— Mas e se eu for mesmo só uma intrusa? E se nunca tiver sido parte desta família?
Ela abanou a cabeça.
— Tu deste tudo de ti. Se eles não conseguem ver isso, o problema não é teu.
As palavras dela ficaram comigo durante dias. Comecei a pensar em tudo o que tinha sacrificado: os meus próprios sonhos adiados para apoiar o António e a Beatriz; as noites em claro preocupada com eles; as festas de Natal em que preparei tudo sozinha para tentar criar memórias felizes.
Na véspera do casamento, ouvi o António ao telefone com a filha:
— Sim, filha… claro que vou sozinho… Sim… Entendo…
Quando desligou, entrou na sala e olhou para mim com um misto de culpa e resignação.
— Vou amanhã cedo — disse apenas.
Assenti em silêncio. Não havia mais nada a dizer.
Na manhã do casamento, acordei cedo e fui dar um passeio pelo bairro. As ruas estavam calmas, mas dentro de mim havia uma tempestade. Passei pela igreja onde tantas vezes levei a Beatriz à catequese quando era pequena. Sentei-me num banco do jardim e deixei as lágrimas caírem livremente.
De repente ouvi uma voz atrás de mim:
— Catarina?
Virei-me e vi a Teresa, mãe da Beatriz.
— Posso sentar-me? — perguntou ela.
Assenti, surpresa demais para falar.
Ela ficou em silêncio durante uns segundos antes de dizer:
— Sei que isto deve estar a ser difícil para ti.
Olhei para ela com amargura.
— Não imagina quanto.
Ela suspirou.
— Quando o António te apresentou à Beatriz… eu fiquei cheia de medo de perder o lugar de mãe dela. Fui injusta contigo muitas vezes. Mas nunca pensei que ela fosse excluir-te assim…
Fiquei sem palavras. Pela primeira vez senti empatia naquela mulher que sempre vi como rival.
— Eu só queria fazer parte da vida dela — confessei baixinho.
Ela assentiu.
— Talvez ainda vás a tempo de construir outra família… ou pelo menos encontrar paz contigo mesma.
Voltámos a ficar em silêncio até ela se levantar e ir embora sem se despedir.
Voltei para casa e sentei-me à janela durante horas, vendo as pessoas passarem na rua enquanto imaginava como estaria a ser o casamento. O António só voltou à noite; entrou sem dizer palavra e foi direto para o quarto.
Naquela noite dormi pouco. Senti-me vazia e traída por todos os lados: pela enteada que nunca me aceitou verdadeiramente; pelo marido que preferiu não enfrentar conflitos; por mim própria por ter esperado tanto tempo por reconhecimento que nunca veio.
Os dias passaram devagar depois disso. O António tentava agir normalmente mas havia um muro entre nós impossível de ignorar. Comecei a pensar na minha vida antes deles: nos sonhos adiados, nas amizades perdidas pelo caminho…
Um mês depois do casamento recebi uma mensagem inesperada da Beatriz:
— Olá Catarina. Espero que estejas bem. Queria pedir desculpa se te magoei… Só agora percebo que talvez tenha sido injusta contigo.
Li aquela mensagem vezes sem conta antes de responder:
— Obrigada por dizeres isso. Desejo-te toda a felicidade do mundo.
Enviei e apaguei logo a conversa. Senti um alívio estranho — como se finalmente pudesse fechar aquele capítulo da minha vida.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas pessoas vivem anos inteiros à espera de serem aceites por quem nunca lhes dará esse lugar? Será que vale mesmo a pena sacrificar tanto por quem não nos vê realmente? Talvez o verdadeiro significado de família seja encontrarmos paz dentro de nós próprios antes de procurarmos aprovação dos outros.