Pequenos-almoços com a minha sogra: Como encontrei a felicidade na minha própria liberdade
— Não percebo, Mariana, como é que consegues servir o pão assim, sem sequer o aqueceres! — A voz da Dona Lurdes ecoou pela cozinha, carregada de um desdém que me cortou mais do que qualquer faca de manteiga. O meu marido, Rui, olhou-me de soslaio, pedindo silêncio com os olhos. Mas eu já não conseguia engolir mais aquela rotina de pequenas humilhações matinais.
A mesa estava posta como sempre: pão fresco da padaria do Sr. António, queijo amanteigado, café acabado de fazer. Mas o ambiente era tudo menos acolhedor. Sentia-me uma intrusa na casa onde vivíamos há seis meses, desde que o Rui perdeu o emprego e não conseguimos manter o nosso pequeno apartamento em Almada. Voltámos para a casa dos pais dele, em Setúbal, com a promessa de que seria temporário. Mas o temporário tornou-se eterno.
— Se calhar preferia que eu nem servisse nada — murmurei, tentando controlar a voz trémula.
— Mariana, por amor de Deus… — começou o Rui, mas a mãe dele já estava de pé, a recolher os pratos com um suspiro teatral.
— Não faz mal, querida. Eu trato disto. Sempre tratei — disse ela, olhando para mim como se eu fosse uma criança desastrada.
Aquela manhã foi só mais uma entre tantas. Os dias passavam entre pequenas discussões e silêncios desconfortáveis. O Rui tentava ser mediador, mas acabava sempre por se fechar no quarto com o computador à procura de trabalho ou a jogar para esquecer. Eu sentia-me cada vez mais sozinha, sufocada por uma casa que nunca foi minha.
À noite, quando finalmente tínhamos algum tempo só para nós, desabafava:
— Não aguento mais isto, Rui. Sinto que nunca vou ser suficiente para a tua mãe.
Ele suspirava, cansado:
— Mariana, ela é assim com toda a gente. Não é só contigo. Mas precisamos dela agora… Não temos para onde ir.
— E até quando? Até quando vamos viver assim?
O Rui não respondia. O silêncio dele era pior do que qualquer palavra dura da Dona Lurdes.
Os meses foram passando. O inverno chegou e trouxe consigo ainda mais tensão. O pai do Rui, o Sr. Manuel, era um homem calado, mas bastava um olhar para perceber que também ele estava farto das discussões constantes. Uma noite, ouvi-os a discutir na sala:
— Lurdes, deixa os miúdos em paz! Já não tens idade para andar sempre em cima deles!
— Se eu não fizer nada, aquela rapariga deixa a casa num caos! — respondeu ela, sem se preocupar se eu ouvia ou não.
Fui para o quarto e fechei a porta com força. Sentei-me na cama e chorei em silêncio. Senti-me tão pequena, tão inútil. Lembrei-me da minha mãe, que morreu quando eu tinha 17 anos. Ela dizia sempre: “Mariana, nunca deixes ninguém tirar-te o teu lugar no mundo.” Mas ali, naquela casa, eu não tinha lugar nenhum.
No Natal desse ano, tentei fazer um esforço para agradar à Dona Lurdes. Preparei um bacalhau à Brás como ela gostava e decorei a mesa com velas e ramos de azevinho. Mas bastou um comentário dela para estragar tudo:
— Está bom… mas o bacalhau ficou um bocadinho seco. Para a próxima pede-me ajuda.
O Rui apertou-me a mão por baixo da mesa. Vi nos olhos dele um pedido de desculpa mudo. Mas eu já estava farta de pedir desculpa por existir.
Foi nessa noite que tomei uma decisão. No dia seguinte, acordei cedo e fui até ao café da esquina procurar anúncios de trabalho no jornal local. Encontrei um anúncio para empregada de limpeza num lar de idosos perto dali. Liguei logo e marquei uma entrevista.
Quando contei ao Rui à noite, ele ficou surpreendido:
— Tens a certeza? É um trabalho duro…
— Tenho. Preciso de fazer alguma coisa por mim. Preciso de sair daqui nem que seja umas horas por dia.
Ele abraçou-me com força. Pela primeira vez em meses senti esperança.
Comecei a trabalhar no lar na semana seguinte. O salário era pouco, mas sentia-me útil outra vez. Os velhinhos sorriam-me todos os dias e agradeciam cada pequeno gesto. A diretora do lar, Dona Rosa, era exigente mas justa — tão diferente da minha sogra.
Com o tempo, fui juntando algum dinheiro numa lata escondida no fundo do roupeiro. O Rui também conseguiu um part-time numa loja de informática. À noite fazíamos planos sussurrados:
— Quando tivermos dinheiro suficiente, alugamos um T1 pequenino só para nós — dizia ele.
— Nem que seja só um quarto… desde que seja nosso — respondia eu.
Mas cada vez que dávamos um passo em frente, parecia que algo nos puxava para trás. A Dona Lurdes começou a desconfiar:
— Mariana anda muito fora de casa… E tu também, Rui! Não sei o que andam a tramar…
Uma noite, depois do jantar, ela explodiu:
— Acham que podem sair daqui assim? Depois de tudo o que fiz por vocês? Esta casa é minha! Não pensem que vão voltar quando as coisas correrem mal!
O Rui levantou-se da mesa com os punhos cerrados:
— Mãe, chega! Não somos crianças! Só queremos viver em paz!
O Sr. Manuel tentou acalmar os ânimos:
— Lurdes, deixa-os ir… Eles precisam do espaço deles.
Mas ela não queria ouvir ninguém. Chorou alto pela casa toda naquela noite.
No dia seguinte fizemos as malas em silêncio. O Rui carregou duas mochilas e eu levei a minha lata com as poupanças. Alugámos um quarto minúsculo numa casa partilhada no Barreiro. O colchão era duro e as paredes finas como papel, mas pela primeira vez em muito tempo dormimos abraçados sem medo de sermos interrompidos.
Os primeiros tempos foram difíceis. O dinheiro mal chegava para as despesas e havia dias em que só tínhamos sopa ao jantar. Mas sentíamo-nos livres — livres das críticas constantes, dos olhares reprovadores, dos silêncios pesados.
Com o tempo fomos crescendo juntos. O Rui conseguiu um emprego melhor numa empresa de informática em Lisboa e eu fui promovida no lar de idosos. Juntámos dinheiro suficiente para alugar um pequeno apartamento só nosso.
No dia em que nos mudámos para lá, sentei-me no chão da sala vazia e chorei — mas desta vez de felicidade.
A Dona Lurdes não nos falou durante meses. Só quando nasceu o nosso primeiro filho é que ela apareceu à porta com um bolo caseiro e lágrimas nos olhos:
— Desculpa… Eu só queria o melhor para vocês.
O Rui abraçou-a e eu também perdoei — mas nunca mais deixei ninguém tirar-me o meu lugar no mundo.
Agora olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos o medo ou a culpa prender-nos onde não pertencemos? E vocês? Já tiveram de lutar pelo vosso próprio espaço? Quero ouvir as vossas histórias.