Quando a sala de aula se torna um campo de batalha: O meu silêncio, a minha luta e a minha família

— João, levanta-te! — gritou o professor Rui, com aquela voz fria que me fazia tremer por dentro. Eu sentia o suor escorrer-me pela testa, as mãos a tremerem, o estômago embrulhado. Tentei erguer-me, mas as pernas não obedeciam. O barulho dos colegas a rir, as cadeiras a arrastar, tudo parecia distante, como se eu estivesse debaixo de água.

“Por favor, não consigo”, murmurei, quase sem voz. Mas ninguém ouviu. Ou melhor, ninguém quis ouvir. O Rui continuava a olhar para mim como se eu fosse um incómodo, um problema a resolver rapidamente para não atrasar a matéria. “João, não tens nada. Deixa-te de fitas.”

Foi nesse momento que tudo ficou preto. Senti o chão fugir-me dos pés e caí. O som do meu corpo a bater no chão ecoou na sala. Depois silêncio. Um silêncio pesado, desconfortável. Quando abri os olhos, vi o rosto da Ana, a minha melhor amiga, pálida de susto. O professor estava ao fundo da sala, braços cruzados, impassível.

No hospital, o médico disse que tinha sido um ataque de ansiedade. “O João está sob muita pressão”, explicou à minha mãe, Teresa. Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos. O meu pai, Manuel, chegou pouco depois, com o rosto carregado de preocupação e raiva contida.

Em casa, o ambiente tornou-se tenso. A minha mãe queria proteger-me, mas sentia-se impotente. O meu pai queria respostas. “Isto não pode continuar assim”, dizia ele à mesa do jantar, batendo com o punho na madeira. “O teu filho precisa de ajuda e aquela escola só sabe fechar os olhos!”

A verdade é que tudo começou meses antes. Sempre fui um miúdo calado, bom aluno, mas nunca fiz parte do grupo dos populares. O Rui era daqueles professores que gostava de mostrar autoridade — mas só para alguns. Os filhos dos amigos dele podiam tudo; eu era sempre o exemplo negativo.

Lembro-me de uma vez em que esqueci os trabalhos de casa porque tinha passado a noite no hospital com a minha avó. Expliquei-lhe isso na manhã seguinte, mas ele nem quis saber: “Desculpas não faltam neste país”, disse alto para toda a turma ouvir. Senti-me pequeno, humilhado.

Os colegas começaram a gozar comigo. Chamavam-me “menino da mamã”, “fraco”, “cagão”. No início tentei ignorar, mas as palavras pesam mais do que pedras. A Ana era a única que me defendia: “Deixem-no em paz! Vocês não sabem o que ele está a passar!” Mas ela também começou a ser posta de parte.

Em casa tentei esconder tudo dos meus pais. Não queria preocupá-los ainda mais — já bastava o stress do trabalho e os problemas com o meu irmão mais velho, o Pedro, que andava metido em más companhias e chegava tarde todos os dias.

Uma noite ouvi os meus pais a discutir na cozinha:
— O Pedro anda perdido e agora o João também? — chorava a minha mãe.
— Não podemos deixar isto assim! — respondia o meu pai.

No dia seguinte, o meu pai foi à escola falar com o diretor, o senhor António. Fui chamado ao gabinete com eles.
— O João tem tido episódios preocupantes — começou o meu pai.
O diretor olhou para mim por cima dos óculos.
— Não temos conhecimento de nada fora do normal. O professor Rui é experiente e nunca tivemos queixas formais.

Senti-me traído. Como era possível ninguém ver? Ouvi-los falar de mim como se eu fosse invisível doeu mais do que qualquer insulto dos colegas.

A partir daí tudo piorou. O Rui começou a fazer comentários ainda mais ácidos nas aulas:
— Espero que hoje ninguém desmaie…
Os risos abafavam qualquer tentativa minha de responder.

A Ana tentou convencer-me a contar tudo à psicóloga da escola. Mas eu sentia vergonha — vergonha de ser fraco, vergonha de não conseguir lidar com aquilo sozinho.

Em casa, o ambiente azedou ainda mais quando o Pedro foi apanhado pela polícia numa rixa à porta da discoteca local. Os meus pais estavam exaustos; eu sentia-me um peso extra nos ombros deles.

Uma noite não aguentei mais e desabei:
— Pai… mãe… eu não aguento mais ir à escola.
A minha mãe abraçou-me com força; o meu pai ficou calado durante uns segundos eternos antes de dizer:
— Amanhã vou contigo à escola e vamos resolver isto juntos.

No dia seguinte entrámos os três no gabinete do diretor. O Rui estava lá também.
— O João sente-se perseguido nesta escola — disse o meu pai sem rodeios.
O diretor tentou desvalorizar:
— São coisas normais da adolescência…
Mas o meu pai não cedeu:
— Não é normal um miúdo desmaiar por ansiedade! Não é normal ser humilhado por um adulto!
O Rui encolheu os ombros:
— Eu trato todos por igual.
Olhei-o nos olhos e vi apenas indiferença.

A discussão subiu de tom até que a minha mãe se levantou e gritou:
— Se não fazem nada pelo nosso filho, vamos à comunicação social!
O diretor ficou lívido.

No final desse dia fui transferido para outra turma e comecei acompanhamento psicológico na escola. A Ana continuou ao meu lado; juntos fomos reconstruindo os pedaços partidos da nossa confiança.

O Pedro acabou por aceitar ajuda também; aos poucos foi-se afastando das más companhias e voltou a casa mais cedo. Os meus pais começaram a falar mais connosco — menos gritos, mais escuta.

Mas as cicatrizes ficaram. Ainda hoje tenho medo de falhar; ainda hoje me pergunto se algum adulto teria feito alguma coisa se os meus pais não tivessem lutado por mim.

Às vezes olho para trás e penso: quantos outros Joões continuam calados nas escolas deste país? Quantos professores preferem ignorar em vez de ajudar? Será que algum dia vamos aprender a ouvir verdadeiramente os nossos filhos?