Quando a Minha Mãe Me Virou as Costas: A História de Inês de Almada
— Não, Inês! Já disse que não posso ficar com os teus filhos hoje. — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, fria como o mármore da bancada onde ela cortava cebolas para o jantar.
Fiquei ali parada, com o casaco ainda vestido e a mochila do Miguel pendurada no ombro. O cheiro do refogado misturava-se ao nó na minha garganta. — Mãe, por favor… Eu só preciso que fiques com eles até às oito. Tenho de ir trabalhar, sabes que não posso faltar outra vez.
Ela pousou a faca com força. — Não sou tua criada! Já criei os meus filhos. Agora quero descansar. Tens de te desenrascar, Inês.
O Miguel, com seis anos, puxou-me pela manga. — Mãe, vamos chegar atrasados à escola?
Olhei para ele e depois para a minha mãe. O olhar dela era uma parede. Senti-me pequena, como quando era criança e ela me castigava por chegar tarde a casa. Mas agora era diferente: eu era mãe, sozinha, e precisava dela mais do que nunca.
O meu marido, o Rui, morreu há dois anos num acidente na autoestrada do Sul. Desde então, tudo mudou. Os amigos desapareceram aos poucos, as contas acumularam-se na caixa do correio e a solidão tornou-se uma sombra constante. A minha mãe era a única família próxima, mas parecia que cada pedido meu era um fardo insuportável para ela.
Naquela manhã, saí de casa com os miúdos pela mão e lágrimas nos olhos. O Miguel percebeu e abraçou-me forte. — Não chores, mãe. Eu porto-me bem na escola.
A Marta, com quatro anos, começou a chorar também. — Quero ficar com a avó…
O caminho até à escola foi um silêncio pesado. Deixei-os no portão e corri para o autocarro. No trabalho, no supermercado do bairro, tentei sorrir para os clientes, mas sentia-me a desmoronar por dentro. A chefe chamou-me ao gabinete ao fim do turno.
— Inês, tens chegado atrasada quase todos os dias. Preciso de alguém em quem possa confiar.
— Eu sei… Desculpe… — A voz falhou-me.
Ela suspirou. — Vou dar-te mais uma oportunidade porque sei que tens três filhos pequenos. Mas não posso continuar assim.
Saí dali com um peso ainda maior nos ombros. Liguei à minha mãe no caminho para casa.
— Mãe, por favor… Amanhã tenho de entrar às sete. Não consigo levar os miúdos à escola tão cedo…
— Já disse que não! Arranja outra solução. — E desligou.
Cheguei a casa e sentei-me no sofá velho da sala. O silêncio era ensurdecedor. Os miúdos brincavam no chão com legos partidos e bonecas sem cabelo. Senti-me uma falhada.
À noite, depois de deitar as crianças, sentei-me à mesa da cozinha com as contas espalhadas à minha frente: renda atrasada, luz por pagar, o frigorífico quase vazio. Pensei em ligar ao meu irmão Luís, mas ele vive no Porto e raramente atende o telefone.
No dia seguinte, acordei antes do sol nascer. Preparei sandes de queijo para o pequeno-almoço e vesti os miúdos ainda meio a dormir. Levei-os comigo para o supermercado e pedi à minha colega Carla para ficar com eles na sala de descanso até abrir a escola.
— Não te preocupes, Inês. Eu fico com eles um bocadinho — disse ela, sorrindo.
Senti uma gratidão imensa por aquela pequena ajuda. Mas sabia que não podia abusar todos os dias.
À noite, liguei à minha mãe mais uma vez.
— Mãe… Por favor… Eles sentem a tua falta…
— Inês, eu já te disse tudo o que tinha a dizer. Não me peças mais nada.
— Mas porquê? O que é que eu te fiz?
Ela ficou em silêncio durante uns segundos longos demais.
— Sempre foste teimosa. Sempre quiseste fazer tudo sozinha. Agora desenrasca-te sozinha também.
Desliguei o telefone a tremer de raiva e tristeza. Lembrei-me dos Natais em família, das tardes no parque quando era pequena… Onde é que tudo se perdeu?
Os dias passaram assim: trabalho, escola, contas por pagar e uma solidão cada vez maior. Uma noite, o Miguel acordou com febre alta. Corri com ele ao hospital público de Almada, a Marta e o Tiago embrulhados em mantas no banco de trás do carro velho do Rui.
Na sala de espera fria e cheia de gente, olhei à volta e vi outras mães sozinhas como eu: olhares cansados, mãos trémulas a segurar crianças doentes. Senti uma estranha sensação de pertença naquele sofrimento partilhado.
Quando finalmente fomos atendidos, o médico disse que era só uma virose passageira. Mas aquela noite ficou gravada em mim: percebi que não podia contar com ninguém a não ser comigo mesma.
No dia seguinte, recebi uma carta da Segurança Social: o subsídio de viuvez ia ser reduzido porque comecei a trabalhar mais horas no supermercado. Era como se cada passo em frente viesse acompanhado de dois passos atrás.
Uma tarde, ao buscar os miúdos à escola, encontrei a minha mãe à porta do café da esquina com as amigas. Ela riu-se alto quando me viu passar carregada com mochilas e sacos das compras.
— Olha quem é ela! A super-mãe! — disse uma das amigas dela em tom trocista.
A minha mãe não disse nada. Só desviou o olhar.
Nessa noite chorei até adormecer. Senti raiva dela por me abandonar assim, mas também raiva de mim própria por ainda precisar tanto dela.
O tempo foi passando e aprendi a pedir ajuda aos vizinhos: a dona Rosa ficou algumas tardes com os miúdos; o senhor António emprestou-me dinheiro para pagar a luz; até a Carla do supermercado trouxe roupa usada dos filhos dela para os meus pequenos.
Aos poucos fui construindo uma nova família feita de estranhos solidários.
No aniversário do Rui, levei os miúdos ao cemitério. O Miguel perguntou:
— Achas que o pai tem saudades nossas?
Abracei-o forte e respondi:
— Acho que sim, meu amor… Acho que sim.
Nesse dia decidi escrever uma carta à minha mãe:
“Mãe,
Sei que estás magoada comigo por coisas antigas que talvez nunca tenha percebido bem. Só queria dizer-te que sinto a tua falta – não só como avó dos meus filhos mas como mãe minha também. Preciso de ti agora mais do que nunca.”
Nunca tive resposta.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi – mas também tudo o que ganhei: força, resiliência e uma nova família feita de pessoas simples mas generosas.
Às vezes pergunto-me: será que alguma vez vou conseguir perdoar a minha mãe? Ou será que há feridas que nunca saram? E vocês? O que fariam no meu lugar?