Mãe, era melhor não vires ao meu casamento – O dia em que perdi o meu filho

— Mãe, acho que era melhor não vires ao meu casamento.

A voz do Miguel soou trémula, mas decidida. Fiquei em silêncio, o telefone colado ao ouvido, como se o tempo tivesse parado. Oiço ao fundo a voz da Inês, a noiva dele, a dizer qualquer coisa apressada. Oiço o som abafado de passos, talvez ele esteja a andar de um lado para o outro na sala. Eu, sentada à mesa da cozinha, com as mãos a tremer, só consigo pensar: como é que chegámos aqui?

— Miguel, filho… — tento dizer alguma coisa, mas a voz falha-me. — O que é que se passa? Fiz alguma coisa?

Ele suspira do outro lado.

— Não é isso, mãe. Só… só acho que vai ser melhor assim. Não quero confusões no dia do meu casamento.

Confusões. A palavra ecoa na minha cabeça como um insulto. Eu, que sempre tentei dar tudo por ele, agora sou vista como uma ameaça à felicidade dele? Lembro-me do dia em que nasceu, do cheiro dele quando era bebé, das noites em claro quando tinha febre. E agora… agora sou um problema a evitar.

— Miguel, por favor… — as lágrimas já me escorrem pelo rosto. — Eu sou tua mãe.

— Eu sei, mãe. Mas tu e o pai… vocês não conseguem estar juntos sem discutir. E a Inês não quer problemas. Já chega de stress.

O pai dele. O António. O homem com quem partilhei vinte e cinco anos de vida e de quem me separei há três anos, depois de uma discussão feia que acabou com gritos e portas a bater. Desde então, mal nos falamos. E o Miguel ficou no meio, sempre a tentar agradar aos dois lados.

— Eu prometo que não vou falar com o teu pai — digo, desesperada. — Só quero ver-te feliz.

— Mãe… — ele hesita. — A Inês acha mesmo melhor assim. Ela não quer arriscar que alguma coisa corra mal.

A Inês. Sempre tão educada comigo, mas fria como gelo. Nunca me perdoou por ter deixado o António, por ter seguido em frente com a minha vida. Sempre achei que ela influenciava demasiado o Miguel, mas nunca quis acreditar que chegasse a este ponto.

Desligo o telefone sem saber como. Fico ali sentada, sozinha na cozinha, a olhar para as fotografias antigas na parede: o Miguel pequeno na praia, o António a segurá-lo ao colo, eu a sorrir como se nada pudesse correr mal. Sinto um aperto no peito tão forte que quase não consigo respirar.

No dia seguinte, recebo uma mensagem da minha irmã, a Teresa:

«O Miguel ligou-me. Disse que não vais ao casamento? O que se passa?»

Não respondo. Não tenho forças para explicar. A Teresa sempre foi mais próxima do António do que de mim; nunca percebeu porque é que me separei. Para ela, eu devia ter aguentado tudo pelo bem da família.

Passam-se dias em que mal como ou durmo. No trabalho, os colegas perguntam-me se estou doente; invento desculpas. À noite, sento-me no sofá e revejo mentalmente todas as discussões com o António: as acusações, os ciúmes, as traições veladas. Penso em todas as vezes em que o Miguel me pediu para não gritar, para não chorar à frente dele.

Uma semana antes do casamento, decido ir falar com o António. Ele mora num apartamento pequeno em Benfica; abro a porta e vejo-o sentado no sofá, de camisola velha e olhar cansado.

— O que é que queres? — pergunta ele, sem se levantar.

— Precisamos de falar sobre o Miguel — digo-lhe.

Ele encolhe os ombros.

— Já sei que não vais ao casamento. Achas que eu tenho culpa?

— Não é isso… — respiro fundo. — António, nós estragámos tudo. O nosso filho vai casar-se e nós nem conseguimos estar juntos na mesma sala.

Ele olha para mim com raiva e tristeza ao mesmo tempo.

— Tu é que foste embora! Tu é que quiseste esta confusão toda!

— Eu fui embora porque já não aguentava mais! — grito-lhe de volta. — Mas nunca quis perder o Miguel!

Ele baixa os olhos e fica em silêncio. Sento-me à frente dele e sinto as lágrimas a quererem sair outra vez.

— António… achas mesmo justo o nosso filho casar-se sem a mãe lá?

Ele abana a cabeça.

— Não sei… Talvez seja melhor assim. Pelo menos não há discussões.

Saio dali ainda mais vazia do que entrei. Pela primeira vez percebo: talvez nunca consigamos perdoar-nos um ao outro pelo que aconteceu.

No sábado do casamento acordo cedo e visto-me devagar. Pego no vestido azul-escuro que comprei há meses para este dia e visto-o mesmo assim; sento-me na cama e fico ali parada, a ouvir os sons da rua lá fora: crianças a brincar, vizinhos a conversar no corredor.

Por volta das onze recebo uma mensagem do Miguel:

«Desculpa, mãe.»

Só isso. Nenhum convite para aparecer à última hora; nenhuma palavra de conforto ou esperança.

Decido sair de casa e vou até ao jardim onde costumávamos passear quando ele era pequeno. Sento-me num banco e vejo famílias felizes à minha volta: pais a correr atrás dos filhos, mães a dar lancheiras aos miúdos.

Sinto uma inveja amarga crescer dentro de mim. Porque é que eu não consegui manter a minha família unida? Porque é que tudo teve de acabar assim?

De repente vejo a Teresa aproximar-se apressada.

— Ana! Estás aqui! — diz ela ofegante.

— Vim apanhar ar — respondo secamente.

Ela senta-se ao meu lado e olha para mim com pena nos olhos.

— O Miguel está nervoso no casamento. Dizem que está pálido… Que acha que tu vais aparecer à última hora.

— Não vou — digo-lhe. — Ele pediu-me para não ir.

Ela suspira e pega na minha mão.

— Talvez ainda vás a tempo de mudar isto tudo…

Abano a cabeça.

— Não posso obrigar ninguém a querer-me lá.

Ficamos ali em silêncio durante muito tempo. Depois ela levanta-se e vai embora para o casamento; eu fico sozinha no banco do jardim até o sol começar a descer no horizonte.

À noite chego a casa e encontro uma carta na caixa do correio. É do Miguel:

«Mãe,
Desculpa por tudo isto. Sei que te magoei muito mas estava com medo de estragar o dia da Inês e meu também. Não quero perder-te mas não sei como resolver isto tudo entre ti e o pai. Espero que um dia consigas perdoar-me.»

Leio aquelas palavras vezes sem conta até as lágrimas me secarem nos olhos.

Passam-se semanas sem notícias dele; tento ligar-lhe mas ele não atende. A Teresa diz-me que ele foi de lua-de-mel para os Açores e que talvez precise de tempo para digerir tudo isto.

No trabalho começo a sentir-me cada vez mais isolada; já ninguém me pergunta nada sobre o casamento do meu filho porque sabem que não fui convidada. Sinto vergonha de contar a verdade; invento desculpas sobre doença ou viagens imprevistas.

Uma noite recebo uma chamada inesperada: é a Inês.

— Olá Ana… Desculpe ligar tão tarde…

Reconheço imediatamente aquela voz fria mas agora há nela um tom hesitante.

— Olá Inês… Está tudo bem?

Ela faz uma pausa longa antes de responder:

— Queria pedir desculpa… Talvez tenhamos sido duros demais consigo… O Miguel está triste desde o casamento…

Fico sem palavras durante uns segundos.

— Eu só queria ver o meu filho feliz — digo-lhe finalmente.

Ela suspira do outro lado da linha:

— Talvez possamos tentar começar de novo… Quando eles voltarem dos Açores…

Desligo o telefone com uma sensação estranha: esperança misturada com medo de voltar a sofrer outra vez.

Os dias passam devagar até receber finalmente uma mensagem do Miguel:

«Mãe, podemos falar?»

Encontro-me com ele num café perto da casa dele; quando entra vejo logo nos olhos dele o peso dos últimos meses.

— Desculpa mãe… Fui cobarde… Tive medo de escolher entre ti e o pai…

Abraço-o com força e sinto finalmente um pouco de paz dentro de mim.

Agora olho para trás e pergunto-me: será possível reconstruir uma família depois de tanta dor? Será possível perdoar quem mais amamos quando nos magoam assim? E vocês? Já sentiram algo parecido?