Mãe, Este é o Miguel: O Meu Futuro e o Peso dos Teus Sonhos
— Não me digas que vais mesmo fazer isto, Inês! — O tom da minha mãe ecoava pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer. Eu estava ali, sentada à mesa de madeira gasta, com as mãos a tremer ligeiramente enquanto segurava a chávena. O Miguel, ao meu lado, mantinha-se calado, os olhos fixos no tampo da mesa, como se ali encontrasse respostas para perguntas que ninguém ousava fazer.
Desde pequena que sinto este peso. O peso das expectativas da minha mãe, Maria do Carmo, uma mulher de ferro, viúva desde cedo, que criou três filhos sozinha num bairro de Lisboa onde todos sabiam da vida uns dos outros. Sempre quis ser a filha perfeita: notas altas, comportamento exemplar, nunca dar trabalho. Mas agora, aos 28 anos, sentia-me como uma criança outra vez, prestes a ser repreendida por um erro grave.
— Mãe, eu amo o Miguel. E vamos casar. — A minha voz saiu mais baixa do que queria. Senti o olhar dela pousar em mim, duro e magoado.
— Casar? E vais mesmo seguir com essa ideia de ter filhos já? Inês, tu sabes bem que a vida não é um conto de fadas! — Ela levantou-se abruptamente, a cadeira a ranger no chão. — Olha para ti! Mal começaste a trabalhar na escola e já queres meter-te em mais responsabilidades? E ele? — Apontou para o Miguel, que finalmente ergueu os olhos.
— Dona Maria do Carmo, eu amo a sua filha. Prometo que vou cuidar dela e dos nossos filhos. — O Miguel falou com uma calma que me surpreendeu. Ele era assim: sereno por fora, mas eu sabia das tempestades que lhe iam na alma. Trabalhava como enfermeiro num hospital público, fazia turnos intermináveis e trazia para casa histórias de dor e esperança.
A minha mãe suspirou fundo. — Tu prometes… Toda a gente promete. Mas promessas não pagam contas nem criam filhos! — A voz dela tremia agora, entre a raiva e o medo.
Lembrei-me de quando era pequena e ela me dizia: “Inês, tu vais ser alguém. Vais ter uma vida melhor do que eu tive.” E eu acreditava. Estudei até tarde todas as noites, recusei festas para não desiludir. Mas nunca foi suficiente. Quando decidi ser professora primária em vez de médica ou advogada como ela sonhara, vi nos olhos dela uma sombra de desilusão.
O Miguel apertou-me a mão por baixo da mesa. Senti-me dividida entre dois mundos: o da mulher que me deu tudo e o do homem que escolhi para construir uma nova vida.
— Mãe… — tentei de novo, com a voz embargada — Eu sei que não é fácil para ti. Mas eu preciso viver a minha vida. Preciso fazer as minhas escolhas.
Ela olhou-me como se me visse pela primeira vez. — E se falhares? E se ele te deixar? E se… — A voz dela perdeu-se num soluço contido.
Levantei-me e abracei-a. Senti o corpo dela rígido antes de finalmente ceder e me envolver nos braços. — Se eu falhar, levanto-me outra vez. Como tu me ensinaste.
O silêncio instalou-se na cozinha. O Miguel levantou-se também e ficou ao nosso lado. Pela primeira vez senti que talvez pudéssemos ser uma família – diferente daquela que ela imaginara para mim, mas ainda assim uma família.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. A minha mãe evitava falar sobre o casamento e sobre os netos que tanto dizia querer – mas agora pareciam-lhe um fardo demasiado pesado para mim. O meu irmão mais velho, João, ligou-me: “A mãe só quer o teu bem, sabes disso.” E eu sabia. Mas também sabia que não podia viver eternamente à sombra dos sonhos dela.
No trabalho, sentia-me exausta. Os miúdos da escola eram a minha alegria e também o meu refúgio. Uma tarde, enquanto corrigia testes na sala dos professores, a minha colega Ana sentou-se ao meu lado.
— Estás com um ar péssimo, Inês… — disse ela em voz baixa.
— É só cansaço — menti.
Ela olhou-me nos olhos e sorriu com ternura. — Às vezes temos de escolher entre fazer os outros felizes ou sermos felizes nós próprios.
As palavras dela ficaram comigo durante dias. O Miguel tentava animar-me: levava-me flores roubadas do jardim do hospital, fazia jantares improvisados à luz das velas no nosso pequeno apartamento alugado em Benfica. Mas eu sentia sempre aquela sombra atrás de mim – o medo de dececionar a minha mãe.
O dia do casamento aproximava-se e a tensão aumentava em casa dos meus pais. A minha mãe recusava-se a falar dos preparativos; dizia apenas: “Faz como quiseres.” No fundo dos olhos dela via tristeza e orgulho ferido.
Na véspera do casamento, fui ter com ela à varanda onde costumava sentar-se ao fim do dia.
— Mãe… — comecei, hesitante.
Ela não olhou para mim. Ficámos ali em silêncio durante minutos intermináveis até que finalmente falou:
— Sabes porque é que tenho tanto medo? Porque sei o quanto custa recomeçar sozinha. Sei o quanto dói ver os sonhos desmoronarem-se.
Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão.
— Eu sei… Mas também sei que não posso viver com medo de falhar. Preciso tentar ser feliz à minha maneira.
Ela olhou-me finalmente nos olhos e vi lágrimas ali presas há anos.
— Só quero que sejas feliz… Mesmo que não seja como eu imaginei.
No dia seguinte casei-me com o Miguel numa cerimónia simples mas cheia de amor. A minha mãe chorou durante toda a cerimónia – lágrimas de tristeza ou de alívio, nunca saberei ao certo.
Passaram-se dois anos desde então. Temos dois filhos pequenos: a Matilde e o Tomás. A vida é dura – há noites sem dormir, contas por pagar e discussões por coisas pequenas. Mas há também risos partilhados na cozinha, abraços apertados ao fim do dia e aquela sensação quente de pertença.
A minha mãe tornou-se uma avó dedicada – embora continue a dar conselhos não solicitados e a criticar as minhas escolhas de vez em quando. Mas agora olho para ela com outros olhos: vejo ali uma mulher marcada pela vida mas cheia de amor para dar.
Às vezes pergunto-me: será possível alguma vez libertarmo-nos totalmente das expectativas dos outros? Ou será que aprendemos apenas a viver com elas – tentando encontrar espaço para sermos nós próprios no meio do ruído?
E vocês? Já sentiram este peso? Como encontraram coragem para seguir o vosso próprio caminho?