Deixei de apoiar financeiramente a minha filha – agora não vejo o meu neto. Fui apenas um porta-moedas?
— Mãe, não percebes que preciso mesmo desse dinheiro? — A voz da Sofia ecoava pelo telefone, carregada de impaciência e, talvez, de uma mágoa que eu não conseguia decifrar.
Sentei-me na ponta da cama, o telemóvel a tremer-me na mão. Oiço o riso do meu neto, o Tomás, ao fundo, abafado pela porta fechada. O coração apertou-se-me no peito.
— Sofia, filha… eu já não consigo ajudar-te como antes. A reforma mal chega para as minhas despesas. — A minha voz saiu fraca, quase um sussurro.
Do outro lado, silêncio. Depois, um suspiro pesado.
— Pois, está bem. Então olha, não venhas cá tão cedo. Estamos ocupados.
O clique frio do telefone desligado deixou-me sozinha com o eco das palavras dela. Fiquei ali sentada, a olhar para as mãos vazias, como se nelas ainda coubesse o mundo inteiro que sempre tentei dar-lhe.
Nunca pensei chegar aqui. Sempre fui aquela mãe que dizia sim a tudo: à escola privada, aos cursos de inglês, às viagens de finalistas. Mesmo quando o António nos deixou — ou melhor, quando fugiu com a colega do escritório — prometi a mim mesma que a Sofia nunca sentiria falta de nada. Trabalhei horas extra no hospital, fiz noites e feriados, perdi aniversários e festas de Natal para garantir que nada lhe faltava.
Lembro-me de um Natal em particular. Ela tinha dez anos e queria uma bicicleta cor-de-rosa. O dinheiro não chegava, mas vendi a minha aliança de casamento para lha comprar. O sorriso dela nesse dia… pensei que era amor. Agora pergunto-me se era apenas gratidão passageira.
Os anos passaram e a Sofia cresceu. Tornou-se mãe cedo demais, talvez porque nunca lhe faltou nada e achou que a vida era fácil. O pai do Tomás desapareceu pouco depois do nascimento dele — história que se repete, parece que nesta família os homens têm medo de ficar.
Desde então, fui eu quem esteve sempre lá: fraldas, consultas, noites sem dormir quando o Tomás tinha febre. E dinheiro. Sempre dinheiro. Quando ela perdeu o emprego, paguei-lhe a renda durante meses. Quando quis tirar um curso novo, paguei as propinas. Quando quis mudar de casa para uma maior — “para o Tomás ter espaço para brincar” — ajudei com o depósito.
Mas agora… agora a reforma é curta e os medicamentos são caros. Tive vergonha de lhe dizer que pedi um empréstimo para pagar a última conta da luz. Quando finalmente lhe disse que não podia ajudar mais, vi nos olhos dela algo que nunca tinha visto: desprezo.
— Não percebes que me estás a complicar a vida? — gritou ela da última vez que nos vimos cara a cara.
— Sofia, eu amo-te. Amo o Tomás. Mas já não consigo… — tentei explicar.
Ela virou-me as costas e levou o neto com ela. Desde esse dia, há quase um ano, não vejo o Tomás. No início ligava todos os dias; depois todas as semanas; agora já nem sei se devo ligar.
Os vizinhos perguntam por ele quando me veem sozinha no jardim.
— Então e o seu netinho? Já não o traz cá?
Sorrio amarelo e invento desculpas: “Está muito ocupado com a escola”, “A Sofia anda cheia de trabalho”. Mas por dentro sinto-me vazia.
Às vezes sonho com ele: vejo-o a correr pelo corredor da minha casa, os caracóis loiros a saltar-lhe na testa, os olhos castanhos — iguais aos meus — a brilharem de alegria quando me vê chegar com um bolo acabado de fazer.
Pergunto-me onde errei. Será que dei demais? Será que criei uma filha incapaz de lutar pelos próprios sonhos? Ou será que nunca fui mais do que um porta-moedas para ela?
A solidão pesa mais à noite. Sento-me à mesa da cozinha com uma chávena de chá frio e olho para as fotografias na parede: Sofia bebé ao colo do pai; Sofia na formatura; Sofia com o Tomás recém-nascido; eu e o Tomás no parque.
Uma vez tentei falar com ela sobre isto tudo.
— Sofia, sinto tanto a tua falta… e do Tomás também.
Ela respondeu por mensagem:
— Quando puderes ajudar outra vez, falamos.
Guardei o telemóvel na gaveta e chorei como há muitos anos não chorava.
A minha irmã Margarida diz-me para ser firme:
— Ela tem de aprender a viver sozinha! Não podes continuar a sacrificar-te assim!
Mas como é que se desliga o coração de mãe? Como é que se aceita ser posta de parte por quem mais amamos?
No outro dia encontrei a educadora do Tomás no supermercado. Perguntou-me se estava tudo bem com ele — disse que já não me via nas festas da escola.
— A Sofia mudou-se? — perguntou ela.
— Não… só… só andamos desencontradas — menti.
A vergonha queimou-me por dentro. Eu, que sempre fui mãe presente, agora sou avó ausente por castigo.
Às vezes penso em ir bater-lhe à porta. Levar-lhe flores ou um bolo como fazia antes. Mas depois lembro-me das palavras frias dela e fico paralisada pelo medo da rejeição.
Oiço histórias de outras mães no centro de saúde: umas dizem que os filhos só ligam quando precisam de dinheiro; outras dizem que os netos são a luz dos seus dias. Eu fico calada e sorrio para não chorar.
No fundo só queria voltar atrás no tempo. Queria ter dito mais vezes “não” à Sofia quando era pequena; queria ter-lhe ensinado o valor das coisas; queria ter-lhe mostrado que amor não se mede em euros nem em presentes caros.
Agora resta-me esperar. Esperar que um dia ela perceba que uma mãe é mais do que uma carteira aberta; esperar que me perdoe por não poder dar-lhe tudo; esperar que me deixe voltar a ver o Tomás antes que ele cresça e se esqueça de mim.
Às vezes pergunto-me: será possível reconstruir uma relação quebrada pelo dinheiro? Ou será que algumas feridas nunca saram? E vocês… já sentiram que foram apenas um porta-moedas para alguém que amam?