Palačincas às Quatro da Manhã – O Que Encontrei à Porta do Meu Filho Partiu-me o Coração

— Mãe, não precisavas de vir tão cedo. — A voz do meu filho, Miguel, soou abafada, quase impaciente, quando abri a porta do prédio com as mãos ainda quentes do saco de palačincas. O relógio marcava quatro e dez da manhã. A rua estava deserta, só o som dos meus passos e o cheiro doce das panquecas a escaparem do pano de linho.

— Eu sei, filho, mas as crianças adoram acordar com palačincas frescas… — tentei sorrir, mas ele desviou o olhar. O silêncio entre nós era pesado, como se cada palavra não dita se acumulasse no ar frio do corredor.

Entrei devagarinho, tentando não acordar ninguém. Mas logo percebi que algo estava errado. A sala estava escura, mas ouvi sussurros vindos da cozinha. Reconheci a voz da minha nora, Inês, e o tom baixo e tenso do Miguel.

— Ela não percebe que precisamos de espaço? — murmurou Inês, julgando que eu não ouviria. — Sempre a meter-se em tudo…

Senti o coração apertar-se no peito. Fiquei parada à porta, sem saber se avançava ou recuava. O cheiro das palačincas já não me parecia reconfortante; era quase um insulto àquela hora.

Miguel apareceu à porta da cozinha e viu-me ali, imóvel, com o saco nas mãos. O embaraço estampou-se-lhe no rosto.

— Mãe… — começou ele, mas não terminou. Inês ficou atrás dele, os olhos vermelhos de cansaço ou talvez de choro.

— Desculpa — disse ela, sem me encarar. — Não sabíamos que vinhas tão cedo…

Sentei-me no sofá, sentindo-me de repente muito velha. As mãos tremiam-me e o saco caiu-me ao colo. Lembrei-me de todas as noites em claro quando o Miguel era pequeno, das febres, dos medos, das histórias inventadas para o acalmar. Lembrei-me de como prometi a mim mesma que nunca lhe faltaria nada.

— Só queria ajudar… — murmurei, mais para mim do que para eles.

O silêncio voltou a instalar-se. Ouvi passos pequeninos no corredor: a Leonor, a minha neta mais nova, apareceu de pijama cor-de-rosa e cabelo despenteado.

— Avó? Já fizeste palačincas? — perguntou ela, com um sorriso sonolento.

Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. Sorri-lhe e abri o saco.

— Claro que sim, querida. Vem cá comer uma com a avó.

Enquanto lhe passava uma palačinca barrada com doce de morango, reparei como o Miguel e a Inês se entreolhavam. Havia ali uma distância que eu nunca tinha sentido antes. Uma barreira invisível que me separava deles.

Depois do pequeno-almoço improvisado, fui arrumar a cozinha em silêncio. Ouvia-os na sala, a falar baixo. Não consegui perceber tudo, mas apanhei fragmentos: “precisamos de limites”, “ela não entende”, “não quero magoá-la”.

Quando terminei, fui buscar o casaco. Miguel veio ter comigo à porta.

— Mãe… — hesitou ele. — Eu sei que fazes isto por amor, mas… talvez devesses descansar mais. Não precisas de te preocupar tanto connosco.

Olhei-o nos olhos e vi ali o menino que criei, mas também um homem que já não precisava de mim da mesma forma. Senti-me inútil e deslocada.

— Não sei fazer outra coisa — respondi-lhe com sinceridade. — Passei a vida toda a cuidar de vocês. Agora… quem sou eu?

Ele não respondeu. Limitou-se a abraçar-me, mas era um abraço diferente: mais curto, mais frio.

Saí para a rua ainda escura e sentei-me num banco do jardim em frente ao prédio. O frio entrava-me pelos ossos e as lágrimas corriam-me pela cara abaixo sem vergonha.

Lembrei-me do António, o meu marido falecido há três anos. Ele sempre dizia: “Um dia eles vão voar do ninho e tu vais ter de aprender a viver só para ti.” Nunca quis acreditar nisso. Sempre achei que uma mãe nunca deixa de ser necessária.

Os dias seguintes foram um tormento. Não consegui dormir nem comer direito. A casa parecia enorme e vazia sem o barulho dos netos ou as chamadas do Miguel a pedir ajuda para isto ou aquilo.

A minha irmã Teresa ligou-me ao fim da semana.

— Estás bem? Pareces cansada…

Desatei a chorar ao telefone.

— Eles já não precisam de mim, Teresa… Sinto-me um peso na vida deles.

Ela suspirou do outro lado.

— Isso é normal, mana. Todos passamos por isso quando os filhos crescem. Tens de encontrar coisas para ti…

Mas como? Passei quarenta anos da minha vida a ser mãe em tempo inteiro. Fui mãe solteira durante anos até conhecer o António. Trabalhei como empregada de limpeza para pagar as contas e garantir que o Miguel nunca sentia falta de nada. Nunca tive tempo para hobbies ou amigas; tudo girava à volta dele.

Lembrei-me de uma vez em que ele tinha oito anos e ficou doente com pneumonia. Passei noites inteiras sentada ao lado da cama dele no hospital, a rezar para que sobrevivesse. Quando finalmente melhorou, prometi-lhe que estaria sempre ali para ele.

Agora percebia que talvez tivesse cumprido essa promessa até demais.

No domingo seguinte, decidi ir à missa sozinha. Sentei-me no banco do fundo e vi outras mães da minha idade rodeadas pelos filhos e netos. Senti inveja e vergonha dessa inveja.

No final da missa, encontrei a Dona Amélia, vizinha do prédio ao lado.

— Então, Maria José? Está tudo bem?

Sorri-lhe sem vontade.

— Mais ou menos… Sinto-me um bocado perdida ultimamente.

Ela pousou-me uma mão no ombro.

— Os filhos crescem e esquecem-se de nós… Mas temos de aprender a viver por nós próprias.

Fui para casa a pensar nessas palavras. Talvez tivesse chegado a altura de me reencontrar.

Comecei devagarinho: inscrevi-me numa aula de pintura na junta de freguesia; aceitei convites para almoçar com antigas colegas; comecei a caminhar todos os dias pelo bairro.

Mas o vazio continuava lá. Cada vez que via uma criança na rua ou ouvia risos vindos das janelas dos vizinhos, sentia uma pontada no peito.

Um dia recebi uma mensagem do Miguel: “Mãe, podes vir buscar as crianças à escola amanhã? Temos uma reunião importante.” O coração saltou-me no peito como se tivesse vinte anos outra vez.

No dia seguinte fui buscá-los com um entusiasmo quase infantil. A Leonor correu para mim aos gritos: “Avó! Avó!” O Tomás veio logo atrás dela com um sorriso tímido.

Passámos a tarde juntos no parque e depois fomos fazer bolo lá para casa deles. A Inês chegou mais cedo do trabalho e encontrou-nos todos sujos de farinha e chocolate.

Ela olhou para mim com um sorriso cansado:

— Obrigada por teres vindo hoje…

Senti que talvez ainda houvesse lugar para mim na vida deles — só precisava de aprender a respeitar os limites deles e encontrar também espaço para mim própria.

À noite, já em casa sozinha outra vez, olhei para as paredes cheias de fotografias antigas: Miguel bebé ao colo; António a rir numa praia qualquer; eu mais nova, cheia de sonhos e medos.

Perguntei-me: será que errei ao dar tudo aos meus filhos? Ou será que é mesmo assim que se ama — sem esperar nada em troca?

E vocês? Já se sentiram dispensáveis na vossa própria família? Como é que se aprende a viver só para nós depois de uma vida inteira dedicada aos outros?