“Não vou sofrer pelos dívidas dos teus pais” – Quando a doença da minha mãe destruiu o meu casamento
“Não vou sofrer pelos dívidas dos teus pais, Inês! Já chega!” O grito do Miguel ecoou pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café queimado e o som abafado da chuva contra as janelas. Eu estava parada junto ao balcão, as mãos trémulas, o telemóvel ainda quente da chamada que acabara de receber do hospital. A minha mãe tinha piorado. E eu sabia que, mais uma vez, teria de pedir dinheiro emprestado ao Miguel.
“Ela é minha mãe, Miguel. O que queres que eu faça? Que vire costas?” A minha voz saiu mais baixa do que eu queria, quase um sussurro. Mas dentro de mim, tudo era tempestade.
Ele passou as mãos pelo cabelo, frustrado. “Inês, já pagámos a renda deles este mês! Já lhes demos dinheiro para os medicamentos! E agora queres mais? Não somos ricos!”
O silêncio caiu pesado entre nós. O relógio da parede marcava quase meia-noite, mas eu sabia que não ia dormir. Não depois disto. Senti-me dividida, como se estivesse a ser rasgada ao meio: de um lado, a minha família de sangue, do outro, a família que tentei construir com o Miguel.
A doença da minha mãe começou há seis meses. Primeiro foi só uma tosse persistente, depois vieram as dores no peito e as idas constantes ao centro de saúde em Almada. O meu pai, reformado das obras, não tinha como pagar os exames privados. O Serviço Nacional de Saúde estava saturado e os meses de espera eram uma sentença. Quando finalmente chegou o diagnóstico – cancro no pulmão – já era tarde demais para operar.
Desde então, cada semana era uma nova urgência: medicamentos caros, consultas particulares, transportes para Lisboa. O meu irmão mais novo, o Tiago, ainda estudava na universidade e mal conseguia ajudar. Eu era a única filha com emprego fixo – secretária numa empresa de seguros – mas o salário mal dava para as nossas contas.
Miguel nunca foi próximo dos meus pais. Achava-os simples demais, demasiado agarrados à aldeia e às tradições. Sempre que íamos lá passar um fim-de-semana, ele reclamava do frio da casa sem aquecimento central e das conversas intermináveis à volta da lareira. Mas nunca pensei que fosse capaz de virar-me as costas quando mais precisava dele.
Naquela noite, depois da discussão, fui dormir para o sofá. O Miguel ficou no quarto, a porta fechada como um muro entre nós. Passei horas a olhar para o teto, a ouvir o vento lá fora e a pensar em tudo o que tinha sacrificado por este casamento: os jantares com amigos que deixei de ir porque ele não gostava deles; os sonhos de viajar que adiei porque ele queria poupar para comprar casa; até o meu sotaque alentejano fui perdendo aos poucos para não ser motivo de piada entre os colegas dele.
No dia seguinte, fui ao hospital sozinha. A minha mãe estava pálida, mas sorriu quando me viu. “Não te preocupes tanto, filha. Já vivi muito.”
Apertei-lhe a mão com força. “Vamos conseguir pagar os tratamentos, mãe. Eu prometo.”
Ela abanou a cabeça devagar. “Não quero que te zangues com o Miguel por minha causa.”
Mas como podia não me zangar? Como podia aceitar que o homem com quem partilhei dez anos da minha vida me obrigasse a escolher entre ele e a minha mãe?
As semanas passaram e as discussões tornaram-se rotina. Cada euro gasto era motivo para acusações: “Estás a pôr os teus pais acima de nós!”, “E se um dia precisarmos nós?”, “Eles nunca souberam gerir dinheiro!”
Uma noite, depois de mais uma chamada desesperada do meu pai – tinham cortado o gás porque não conseguiram pagar a conta –, cheguei a casa e encontrei o Miguel sentado à mesa com uma folha de Excel aberta no portátil.
“Temos de falar.” O tom dele era frio, quase profissional.
Sentei-me à frente dele, sentindo-me uma criança chamada à direção.
“Fiz as contas. Se continuarmos assim, daqui a três meses estamos endividados também.”
“Então o que sugeres?” perguntei, já sem esperança.
“Que deixes de lhes dar dinheiro. Ou então… cada um segue a sua vida.”
O mundo parou por um segundo. Olhei para ele e vi um estranho: alguém que nunca entenderia o peso da família para mim; alguém que nunca soube o que era crescer sem nada e ainda assim partilhar tudo.
Levantei-me devagar. “Se fosse a tua mãe? Se fosse ela ali deitada numa cama de hospital?”
Ele desviou o olhar. “A minha mãe sempre soube poupar.”
Saí de casa nessa noite sem saber se voltaria. Fui dormir à casa dos meus pais, no velho quarto onde ainda estavam colados à parede os posters da minha adolescência. O cheiro da roupa lavada pela minha mãe misturava-se com o aroma do chá de lúcia-lima que ela fazia sempre antes de dormir.
O Tiago chegou tarde da universidade e sentou-se ao meu lado na cama.
“Vais mesmo separar-te do Miguel?”
Encolhi os ombros, sentindo as lágrimas arderem nos olhos.
“Não sei… Sinto-me perdida.”
Ele pousou uma mão no meu ombro. “Fizeste tudo por esta família. Ninguém te pode pedir mais.”
Mas eu sabia que podia dar mais. E dei. Nos meses seguintes, pedi um empréstimo ao banco em meu nome para pagar os tratamentos da minha mãe. Trabalhei horas extra sempre que podia. O Miguel ligava-me às vezes – mensagens curtas, frias: “Precisas de vir buscar as tuas coisas?”, “Quando vens buscar os papéis do divórcio?” Nunca respondi.
A minha mãe acabou por partir numa manhã fria de janeiro. Estávamos todos ao seu lado: eu, o Tiago e o meu pai. Ela apertou-me a mão até ao fim.
No funeral, vi o Miguel ao longe, parado junto ao portão do cemitério. Os olhos dele cruzaram-se com os meus por um instante – cheios de culpa ou talvez só alívio por já não ter de escolher entre mim e a sua paz financeira.
Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Setúbal. Ainda pago as dívidas do empréstimo e ajudo o meu pai sempre que posso. Às vezes penso no Miguel e no que poderia ter sido se ele tivesse entendido que família não é só quem partilha uma casa ou uma conta bancária.
Pergunto-me muitas vezes: quantos casamentos sobrevivem quando somos forçados a escolher entre quem amamos e quem nos criou? Será justo pedir-nos essa escolha? E vocês… já tiveram de sacrificar algo ou alguém por lealdade à vossa família?