De Volta à Aldeia: O Passado Que Nunca Morre
— Não devias ter voltado, Miguel. — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha fria, carregada de uma mágoa antiga que nunca se dissipou. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma húmido das paredes velhas, e eu, parado à porta, sentia-me de novo aquele rapaz de vinte anos, prestes a fugir de tudo.
Olhei para ela, os olhos fundos marcados pelo tempo e pela solidão. — Mãe, passaram catorze anos. Não achas que já chega de silêncio?
Ela virou-me as costas, mexendo na chávena com mãos trémulas. — O tempo não apaga tudo, Miguel. Há coisas que ficam.
A verdade é que nunca pensei regressar a Vila Nova do Monte. A cidade tinha-me engolido, dado um emprego num escritório cinzento e uma vida onde ninguém sabia o meu nome completo. Mas quando recebi a carta do meu irmão Rui — “O pai está mal. Se quiseres despedir-te, vem depressa” — não hesitei. Fiz a mala em silêncio, como quem se prepara para um funeral.
A viagem foi longa e cada quilómetro parecia arrancar-me pedaços de pele. As oliveiras, as casas brancas com telhados vermelhos, o cheiro a terra molhada… Tudo igual e tudo diferente. Quando cheguei à aldeia, as pessoas olhavam-me como se fosse um fantasma. Senti o peso dos olhares, dos sussurros: “É o filho da D. Teresa… aquele que fugiu depois daquilo com a Inês…”
Na casa dos meus pais, o ambiente era denso. O meu pai estava deitado no quarto, os olhos perdidos no tecto, a respiração pesada. Sentei-me ao lado dele, sem saber o que dizer. Ele apertou-me a mão com força inesperada.
— Não te culpes, filho. Todos erramos.
As palavras dele caíram sobre mim como chuva morna. Quis chorar, mas não consegui. O meu irmão Rui entrou nesse momento, o rosto fechado.
— Vieste só por causa do pai? Ou queres resolver outras coisas?
O Rui nunca me perdoou por ter partido sem avisar ninguém, por ter deixado a mãe sozinha com os problemas todos. Sempre foi ele o filho responsável, o que ficou para cuidar da terra e dos pais.
— Vim porque precisava. Porque não aguentava mais fugir.
Ele riu-se, amargo. — Fugir é o que sabes fazer melhor.
Durante dias, vivi entre silêncios e memórias. A casa parecia mais pequena, cheia de ecos do passado: as discussões dos meus pais por causa do dinheiro, as noites em que eu e o Rui nos escondíamos no sótão para fugir aos gritos. E depois havia a Inês.
Nunca esqueci a Inês. O primeiro beijo atrás da igreja, as promessas sussurradas ao luar. Mas também nunca esqueci o dia em que tudo desabou: o pai dela apanhou-nos juntos e fez um escândalo na aldeia inteira. A minha mãe chorou durante dias; o meu pai bateu-me como nunca antes. E eu fugi — deixei tudo para trás.
Na segunda noite após o regresso, fui ao café da aldeia. O Sr. Joaquim olhou-me com surpresa e serviu-me um bagaço sem dizer palavra. Sentei-me num canto e vi-a entrar: Inês, agora mulher feita, com um menino pela mão.
O coração disparou-me no peito. Ela viu-me e hesitou antes de se aproximar.
— Olá, Miguel.
A voz dela era igual à que eu lembrava: doce mas firme.
— Olá, Inês… Estás bem?
Ela sorriu de lado, mas havia tristeza nos olhos.
— Estou como posso estar. E tu? Vieste para ficar?
Encolhi os ombros.
— Não sei… Vim despedir-me do meu pai.
O menino puxou-lhe a saia.
— Mamã, vamos?
Ela fez-lhe uma festa na cabeça e olhou para mim.
— O tempo passa depressa demais, Miguel. Há coisas que nunca mudam… Outras mudam demasiado.
Fiquei ali sentado depois dela sair, a olhar para o copo vazio e a pensar em tudo o que podia ter sido diferente se eu tivesse ficado.
Nos dias seguintes, tentei falar com o Rui. Queria pedir-lhe desculpa por tudo: por ter fugido, por ter deixado os pais sozinhos, por nunca ter escrito ou telefonado. Mas ele evitava-me sempre que podia.
Uma tarde encontrei-o no campo, junto ao velho poço onde costumávamos brincar em miúdos.
— Rui… — chamei.
Ele não se virou.
— O que queres?
— Quero pedir-te desculpa. Sei que te deixei sozinho com tudo… Sei que fui cobarde.
Ele ficou calado durante um tempo que me pareceu uma eternidade.
— Achas que basta pedires desculpa? Achas que isso apaga os anos todos em que tive de ser pai e mãe cá em casa? Que tive de ver a mãe chorar todas as noites porque não sabia se estavas vivo ou morto?
Senti um nó na garganta.
— Não apaga nada… Mas é tudo o que posso dar-te agora.
Ele virou-se finalmente para mim, os olhos vermelhos de raiva e cansaço.
— Não sei se consigo perdoar-te, Miguel. Mas pelo menos estás aqui agora… Talvez seja um começo.
Nessa noite sentei-me no quarto onde cresci e chorei como há muito não chorava. Chorei pelos anos perdidos, pelas palavras não ditas, pelo amor à Inês que nunca morreu.
No dia seguinte soube pela vizinha que o marido da Inês tinha morrido há dois anos num acidente na estrada nacional. Senti uma dor estranha — uma mistura de esperança e culpa.
Encontrei-a junto ao rio onde costumávamos namorar em segredo.
— Inês…
Ela sorriu tristemente.
— Vieste despedir-te outra vez?
Abanei a cabeça.
— Não quero fugir mais. Não quero perder mais nada nem ninguém nesta vida.
Ela olhou-me nos olhos durante muito tempo antes de responder:
— O passado não se apaga, Miguel. Mas talvez possamos aprender a viver com ele…
Ficámos ali em silêncio, ouvindo apenas o som da água a correr e dos pássaros ao entardecer.
O meu pai morreu dois dias depois. No funeral estavam todos: vizinhos curiosos, amigos antigos e até pessoas com quem nunca falei muito. Senti uma paz estranha ao ver tanta gente reunida por ele — por nós.
Depois do funeral sentei-me com a minha mãe na varanda da casa velha. Ela pegou-me na mão pela primeira vez desde que voltei.
— Foste embora porque tinhas medo… Mas voltaste porque tens coragem. Isso é mais do que muitos conseguem fazer nesta vida.
Olhei para ela e percebi finalmente: talvez nunca consiga apagar os erros do passado, mas posso escolher não repetir os mesmos erros no futuro.
Agora pergunto-me: quantos de nós vivem presos ao passado sem coragem de regressar? E será possível recomeçar quando já perdemos tanto?