Mãe, tu nunca percebeste…: Um Verão de Silêncio e Sacrifício

— Mãe, não podes simplesmente fazer as coisas à tua maneira! — gritou a minha nora, Inês, com os olhos faiscantes de frustração. O meu filho, Rui, estava ao lado dela, calado, mas o olhar dele dizia tudo: estava do lado dela, não do meu. Senti o chão fugir-me dos pés. Como é que chegámos aqui?

A cozinha estava cheia do cheiro do arroz de pato que preparei para o jantar. As crianças brincavam na sala, riam alto, alheias à tensão que pairava no ar. Eu queria apenas ajudar. Sempre quis ajudar. Desde que Rui nasceu, dediquei-lhe tudo: noites sem dormir, dias de trabalho dobrado, sonhos adiados. Agora, com os meus sessenta e sete anos, achei que podia ser útil outra vez.

O verão começou com um pedido simples: — Mãe, será que podes ficar com os miúdos durante as férias? — perguntou Rui ao telefone, a voz cansada. — Eu e a Inês estamos cheios de trabalho e não temos onde os deixar.

O coração saltou-me no peito. Senti-me importante outra vez. — Claro que sim, filho! Vai ser um prazer.

No início foi mesmo. O Tomás e a Leonor encheram a casa de gargalhadas e brinquedos espalhados. Levava-os ao parque, fazia bolos de iogurte, contava histórias antes de dormir. Sentia-me viva. Mas aos poucos, o cansaço foi-se acumulando. As dores nas costas aumentaram, as noites tornaram-se mais curtas. Ainda assim, nunca me queixei.

Inês vinha buscá-los ao fim do dia, sempre apressada, quase sem olhar para mim. — Obrigada, sogra — dizia, mas sem calor na voz. Rui ligava de vez em quando: — Está tudo bem por aí? — perguntava distraído. Eu respondia sempre que sim.

Até ao dia em que tudo mudou.

Foi numa sexta-feira abafada de agosto. Tomás caiu no parque e esfolou o joelho. Chorei por dentro ao vê-lo magoado, mas tratei do ferimento como sabia: água oxigenada, um penso colorido e um beijo. Quando Inês chegou e viu o penso no joelho do filho, explodiu:

— Como é que deixaste isto acontecer? Não estavas a olhar para ele?

Fiquei sem palavras. Tentei explicar: — Ele tropeçou sozinho… Estava mesmo ao meu lado…

— Não interessa! — cortou ela. — Se não consegues tomar conta deles, diz-nos!

Rui ficou calado. Olhou para mim como se eu fosse uma estranha.

Nessa noite não dormi. Senti-me inútil, velha, descartável. Lembrei-me da minha mãe, das vezes em que ela me dizia: “Filha, quando fores avó vais perceber.” Nunca pensei que doesse tanto.

No sábado seguinte, Rui apareceu cá em casa sozinho.

— Mãe… — começou ele, hesitante — A Inês acha melhor arranjarmos outra solução para as crianças. Não queremos sobrecarregar-te.

Olhei para ele e vi o menino que embalei nos braços tantas noites. Agora era um homem feito, mas tão distante de mim.

— Rui… Eu só queria ajudar-vos. Só queria sentir-me útil…

Ele desviou o olhar.

— Eu sei, mãe. Mas as coisas mudaram…

As coisas mudaram. Fiquei sozinha em casa outra vez. O silêncio era ensurdecedor. Os brinquedos ficaram arrumados num canto, as histórias por contar ficaram presas na garganta.

Os dias seguintes foram um arrastar de horas vazias. As vizinhas perguntavam pelos netos; eu sorria e dizia que estavam bem, a passar férias com os pais.

Uma tarde, encontrei a minha irmã Maria no café da vila.

— Estás com má cara, Rosa — disse ela, preocupada.

Desabafei tudo: o cansaço, a ingratidão, a solidão.

— Sabes o que é pior? — disse-lhe eu — Não foi o trabalho nem o cansaço… Foi sentir que já não faço falta a ninguém.

Maria apertou-me a mão.

— Fazes falta sim. Só que eles ainda não perceberam.

O verão passou devagarinho. No aniversário da Leonor convidaram-me para jantar em casa deles. Fui com o coração apertado. A Inês estava fria como sempre; Rui tentava disfarçar o desconforto.

Durante o jantar ouvi-os falar dos planos para as férias seguintes: uma viagem ao Algarve só os quatro.

Senti-me excluída da vida deles. Senti inveja das outras avós da aldeia que passeavam com os netos pela mão.

Naquela noite chorei baixinho na almofada. Perguntei-me se tinha feito algo de errado como mãe ou como sogra. Recordei todos os sacrifícios feitos em silêncio: os turnos duplos na fábrica para pagar os estudos do Rui; as noites em claro quando ele tinha febre; os natais em que fiquei sozinha para eles poderem ir à família da Inês.

No domingo seguinte fui à missa e rezei por eles. Pedi apenas que fossem felizes e que um dia percebessem quanto amor ficou por dizer.

Agora escrevo esta história sentada na varanda da minha casa vazia. O cheiro do arroz de pato ainda paira no ar como uma memória distante.

Pergunto-me: quantas avós portuguesas sentem esta dor silenciosa? Quantas sacrificam tudo pelos filhos e netos e acabam esquecidas num canto?

Será que algum dia vão perceber quanto amor cabe no silêncio de uma mãe?