O Lamento Incessante do Apartamento 3B: Uma Vizinhança em Suspense
— Outra vez, mãe? Não consigo dormir com esse barulho! — gritei, apertando o travesseiro contra os ouvidos. O lamento vinha do apartamento 3B, mesmo em frente ao nosso. Era um choro agudo, quase animal, que atravessava as paredes finas do prédio antigo na Rua dos Anjos.
A minha mãe, Dona Teresa, suspirou fundo e desligou a televisão. — Filha, já te disse para não te meteres. Cada um sabe de si. — Mas eu não conseguia ignorar. O som era tão constante que parecia fazer parte da mobília, como o ranger do soalho ou o cheiro a café queimado nas manhãs de domingo.
No início, todos pensámos que era só uma criança birrenta. Mas com o passar das semanas, o choro tornou-se mais desesperado, mais frequente. Às vezes, misturava-se com gritos abafados e sons de coisas a partir. Começaram as conversas sussurradas nas escadas:
— Já ouviste o que se passa no 3B?
— Dizem que a mulher ficou sozinha com o filho depois do marido fugir.
— Eu ouvi que ela perdeu o emprego e anda a passar fome.
A curiosidade misturava-se com medo. Ninguém queria ser o primeiro a bater à porta. O senhor Manuel, do rés-do-chão, sugeriu chamar a polícia. Dona Amélia, sempre pronta para um escândalo, dizia que era melhor não nos metermos na vida dos outros.
Eu não conseguia deixar de pensar no menino do 3B. Imaginava-o encolhido num canto, rodeado de brinquedos partidos e sonhos desfeitos. Uma noite, não aguentei mais. Esperei até ao silêncio da madrugada e fui até à porta deles. Bati devagarinho.
Do outro lado, ouvi passos arrastados. A porta abriu-se uma fresta e vi um olho vermelho e desconfiado.
— Quem é? — perguntou uma voz rouca.
— Sou a Inês, moro em frente… Está tudo bem?
O silêncio caiu pesado entre nós. Senti o cheiro a mofo e algo mais — talvez medo ou vergonha. A mulher abriu um pouco mais a porta e vi o rosto dela: pálido, com olheiras profundas.
— Está tudo bem, obrigada — disse ela, fechando a porta antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa.
Voltei para casa com o coração apertado. Contei à minha mãe, que me olhou com reprovação.
— Vês? Não ganhaste nada com isso. Agora vão pensar que somos cuscas.
Mas eu sabia que não podia ficar indiferente. Nos dias seguintes, tentei sorrir para ela no elevador, mas ela desviava sempre o olhar. O choro continuava, cada vez mais alto.
Uma tarde, ao regressar da escola, encontrei o senhor Manuel à porta do prédio, a discutir com dois polícias.
— Não aguentamos mais! — exclamava ele. — Isto não é vida!
Os polícias subiram ao 3B e bateram à porta. O prédio inteiro ficou em silêncio. Espreitei pela minha porta entreaberta e vi quando eles entraram. Passaram-se minutos que pareceram horas até saírem, acompanhados pela mulher e uma criança magra de olhos enormes.
A vizinhança reuniu-se no corredor. Dona Amélia foi a primeira a falar:
— Coitada da rapariga… Dizem que está doente da cabeça.
O senhor Manuel abanou a cabeça:
— E o miúdo? Vai para onde?
Ninguém sabia responder. Naquela noite, o prédio ficou estranhamente silencioso. Senti falta do choro — como se aquele som tivesse preenchido um vazio maior do que eu imaginava.
Nos dias seguintes, soubemos que a mulher fora internada e o menino entregue aos serviços sociais. A notícia espalhou-se como fogo:
— Devíamos ter feito alguma coisa antes!
— E se fosse connosco?
— Ninguém quer meter-se em problemas…
A culpa pairava no ar como um nevoeiro denso. Eu sentia-me responsável por não ter insistido mais, por não ter batido à porta todos os dias se fosse preciso.
Meses depois, o apartamento 3B foi alugado a um casal jovem. Pintaram as paredes e mudaram as cortinas. Mas para mim, aquele lugar nunca mais foi o mesmo.
Às vezes ainda sonho com o menino de olhos grandes e tristes. Pergunto-me se ele encontrou um lar onde possa dormir sem medo.
Agora percebo como é fácil virar a cara ao sofrimento dos outros — até que ele bate à nossa porta. Será que algum dia aprendemos a ser verdadeiramente vizinhos? E vocês, teriam feito diferente?