Uma Batida à Porta na Madrugada: Segredos, Traição e o Luto que Nunca Perdoei

— Abre, por favor… — ouvi a voz trémula da Dona Amélia, a minha sogra, do outro lado da porta. Eram quase três da manhã e a chuva batia forte nas janelas do nosso apartamento em Setúbal. O meu coração disparou — nunca ninguém bate à porta a estas horas sem trazer más notícias.

Abri a porta e vi-a ali, encharcada, os olhos vermelhos de tanto chorar. — O Miguel… — murmurou ela, antes de desabar nos meus braços. Senti o cheiro do seu perfume misturado com o odor da noite húmida. O Miguel, o meu marido, ainda não tinha chegado a casa. O relógio marcava 2h47.

— O que aconteceu? — perguntei, tentando manter a calma enquanto a ajudava a entrar. Ela tremia tanto que tive de lhe buscar uma manta. — Senta-te, Dona Amélia. Por favor, diz-me o que se passa.

Ela olhou-me nos olhos, como se procurasse coragem para falar. — O Miguel… ele não está bem. Eu… eu descobri coisas que nunca devia ter descoberto.

O silêncio caiu pesado entre nós. Oiço o tique-taque do relógio da sala e o som distante de um carro a passar na rua molhada. Senti um frio na espinha — algo me dizia que aquela noite ia mudar tudo.

— Dona Amélia, por favor… — insisti, já com lágrimas nos olhos.

Ela respirou fundo e disse: — O Miguel tem outra mulher. E não é de agora.

O chão fugiu-me dos pés. Senti-me a afundar num poço escuro, sem conseguir respirar. — Não… não pode ser. Ele… ele prometeu-me… — balbuciei, agarrando-me ao braço do sofá.

Ela continuou: — Eu só descobri porque ele deixou o telemóvel em casa quando foi visitar o pai ao hospital. Vi mensagens… fotografias… até vídeos. Não consegui dormir desde então.

A raiva misturou-se com o desespero. Lembrei-me de todas as noites em que ele chegava tarde, das desculpas esfarrapadas sobre o trabalho no escritório de advogados, das viagens “de negócios” ao Porto. Sempre confiei nele. Sempre.

— E agora? Onde é que ele está? — perguntei, já sem conseguir conter as lágrimas.

— Não sei… — respondeu ela, baixando os olhos. — Liguei-lhe dezenas de vezes. Não atende.

O meu filho, o Tiago, acordou com o barulho e apareceu na sala de pijama, esfregando os olhos. — Mamã? O que se passa?

Ajoelhei-me ao lado dele e abracei-o com força. — Está tudo bem, meu amor… vai dormir mais um bocadinho.

Mas nada estava bem. Naquela noite não dormi. Fiquei sentada no sofá com a Dona Amélia ao meu lado, ambas em silêncio, cada uma perdida nos seus pensamentos e mágoas.

Quando o sol começou a nascer, ouvi a chave na porta. O Miguel entrou devagarinho, como quem não quer acordar ninguém. Quando nos viu ali sentadas, ficou pálido.

— O que se passa aqui? — perguntou ele, tentando soar natural.

Levantei-me num salto. — Tu tens outra mulher? Diz-me na cara!

Ele ficou em silêncio por uns segundos eternos. Depois baixou os olhos e murmurou: — Não era para ser assim…

A Dona Amélia levantou-se também, furiosa: — Como é que foste capaz de fazer isto à tua família? À tua mulher? Ao teu filho?

O Miguel explodiu: — Vocês não percebem! Eu já não aguentava mais esta vida! Sempre as mesmas discussões, sempre as mesmas cobranças! Eu precisava de respirar!

Senti uma dor aguda no peito. — E achaste que trair era a solução? Achaste que eu e o Tiago merecíamos isto?

Ele tentou aproximar-se de mim mas recuei instintivamente. — Desculpa… eu ia contar-te tudo… mas depois do acidente do meu pai… eu não consegui…

A Dona Amélia chorava baixinho no canto da sala. O Tiago apareceu outra vez à porta, assustado com os gritos.

— Papá? Porque é que a mamã está a chorar?

O Miguel ajoelhou-se ao lado dele e tentou abraçá-lo mas o Tiago afastou-se.

— Não me toques! — gritei eu, já sem conseguir controlar as emoções. — Sai daqui! Vai para onde quiseres mas não voltes enquanto não souberes o que queres da tua vida!

O Miguel saiu batendo com a porta. Fiquei ali parada, abraçada ao meu filho e à minha sogra, sentindo-me mais sozinha do que nunca.

Os dias seguintes foram um pesadelo. A Dona Amélia ficou connosco durante semanas, tentando ajudar como podia. Mas eu estava destruída por dentro. Não conseguia comer nem dormir. Só chorava e gritava com todos à minha volta.

O Tiago começou a ter pesadelos todas as noites. Acordava a chorar e perguntava pelo pai. Eu tentava ser forte por ele mas sentia-me cada vez mais fraca.

A família do Miguel começou a ligar-me todos os dias, uns a pedir desculpa pelo comportamento dele, outros a culpar-me por “não ter sabido segurar o marido”. A minha mãe dizia-me para perdoar, pelo bem do Tiago. O meu pai dizia para seguir em frente e nunca mais olhar para trás.

No meio disto tudo, descobri que o Miguel tinha perdido o emprego há meses e nunca me contou nada. Estava endividado até ao pescoço e usava o pouco dinheiro que tínhamos para sustentar a outra mulher.

Senti-me traída em todos os sentidos possíveis: como mulher, como mãe, como companheira de uma vida inteira.

Um dia recebi uma carta anónima na caixa do correio: “Ele nunca te amou de verdade.” Não sei quem a enviou mas aquilo foi como uma facada no peito.

A Dona Amélia adoeceu pouco tempo depois. O stress e a culpa consumiram-na por dentro. Fui eu quem cuidou dela até ao fim dos seus dias — ironicamente, ela tornou-se a minha maior confidente naquele período negro da minha vida.

O Miguel apareceu no funeral da mãe mas nem olhou para mim ou para o Tiago. Parecia um fantasma do homem que conheci há tantos anos atrás.

Hoje vivo sozinha com o Tiago num pequeno apartamento em Almada. Ele já tem dez anos e pergunta cada vez menos pelo pai. Eu trabalho demais para não pensar no passado mas às vezes ainda acordo sobressaltada com aquela batida à porta na madrugada.

Pergunto-me muitas vezes: será possível perdoar alguém que destruiu tudo aquilo em que acreditávamos? Ou será que há feridas que nunca saram? Talvez vocês possam ajudar-me a encontrar uma resposta.