“Durante anos fui a mulher para tudo. Até que um dia simplesmente deixei de atender o telefone”: Agora sei o que é viver para mim

— Teresa, podes vir cá a casa buscar o Tiago? O Pedro está doente e eu tenho de ir trabalhar — a voz da minha filha, Inês, soava apressada, quase exigente, do outro lado da linha.

Olhei para o relógio. Eram sete e meia da manhã. Nem sequer tinha tomado o pequeno-almoço. Suspirei, sentindo aquele peso familiar no peito. Mais um dia em que os planos seriam postos de lado para acudir à família.

— Sim, filha. Vou já — respondi, tentando esconder o cansaço na voz.

Desliguei o telefone e olhei pela janela da cozinha. O céu estava cinzento, ameaçando chuva. O cheiro do café fresco misturava-se com o silêncio da casa. Era raro aquele silêncio. Desde que me lembro, sempre fui a mulher para tudo: mãe, avó, esposa, irmã, amiga, vizinha prestável. Sempre pronta a ajudar, a resolver, a ouvir.

Quando era pequena, a minha mãe dizia-me: “Teresa, uma mulher tem de estar sempre disponível para os outros.” Cresci a acreditar nisso. Casei cedo com o António, um homem bom mas ausente, sempre mais preocupado com o trabalho do que com a família. Tive dois filhos: a Inês e o Rui. Dediquei-lhes tudo. Quando eram pequenos, acordava de madrugada para lhes preparar o lanche, levava-os à escola, ajudava nos trabalhos de casa. Quando adoeciam, era eu quem passava noites em claro ao lado deles.

O António chegava tarde e mal falava comigo. Às vezes perguntava:

— O que é o jantar?

E eu respondia, tentando sorrir:

— Fiz bacalhau à Brás, como gostas.

Ele sentava-se à mesa sem agradecer. Os filhos também raramente diziam obrigado. Era como se tudo aquilo fosse natural, um direito adquirido.

Os anos passaram e os filhos cresceram. A Inês casou-se cedo e teve o Tiago. O Rui foi estudar para Lisboa e só vinha a casa nos fins de semana. O António reformou-se mas continuava distante, fechado no seu mundo de jornais e televisão.

Foi então que comecei a sentir um vazio estranho. Uma sensação de que a minha vida era feita apenas dos outros. Os meus dias eram uma sucessão de tarefas: levar o neto à escola, fazer compras para a Inês, ajudar o Rui com as mudanças de casa, cozinhar para o António. Até os vizinhos vinham bater-me à porta:

— Dona Teresa, pode ficar com a minha filha só por uma horinha?

E eu dizia sempre que sim.

Nunca ninguém me perguntou como estava. Nem sequer eu própria sabia responder a essa pergunta. Quando me olhava ao espelho via uma mulher cansada, com rugas profundas e olhos tristes.

Lembro-me de um domingo em particular. Estava sentada na sala com o Tiago ao colo, enquanto via desenhos animados pela enésima vez. O António dormia no sofá. O telefone tocou — era a minha irmã:

— Teresa, preciso que me vás buscar ao hospital. O João não pode ir e eu não quero apanhar táxi.

Olhei para o relógio: eram quase oito da noite. Não hesitei:

— Claro, já vou.

Saí de casa sem jantar e só regressei perto da meia-noite. Ninguém perguntou onde tinha ido ou se precisava de alguma coisa.

Naquela noite chorei baixinho na casa de banho. Senti-me invisível.

Os meses passaram e comecei a sentir dores no corpo todo. Fui ao médico e ele disse:

— Dona Teresa, precisa de descansar mais. Está com esgotamento.

Sorri ironicamente. Descansar? Como?

Um dia acordei com uma dor aguda no peito. Pensei que era um ataque cardíaco. Fui parar às urgências sozinha porque ninguém atendeu o telefone quando liguei — estavam todos ocupados com as suas vidas.

Fiquei internada dois dias por precaução. Ninguém me foi visitar.

Quando regressei a casa, sentei-me na cozinha e olhei para o telefone em cima da mesa. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Pela primeira vez na vida perguntei-me: “E eu? Quem cuida de mim?”

Naquela manhã tomei uma decisão: deixei de atender o telefone.

No início foi estranho. O telefone tocava insistentemente — Inês, Rui, irmã, vizinha — mas eu não atendia. Sentei-me na varanda com um livro nas mãos e ouvi os pássaros pela primeira vez em anos.

No segundo dia recebi mensagens preocupadas:

— Mãe, está tudo bem?
— Teresa, preciso mesmo de ti!
— Avó, vens buscar-me?

Não respondi.

Ao terceiro dia batiam à porta:

— Teresa? Está aí?

Fiquei em silêncio.

Ao fim de uma semana começaram a aparecer em casa. A Inês entrou aflita:

— Mãe! Porque não atendes? Preciso tanto de ti!

Olhei-a nos olhos pela primeira vez em muito tempo e disse calmamente:

— Precisas de mim ou precisas que eu faça tudo por ti?

Ela ficou sem palavras.

O Rui veio no fim de semana seguinte:

— Mãe… Estás zangada connosco?

Abanei a cabeça:

— Não estou zangada. Estou cansada.

O António nem percebeu nada durante dias até reparar que não havia jantar pronto nem roupa lavada.

— Teresa! O que se passa contigo?

Sentei-me à mesa com ele e disse:

— Passei metade da vida a cuidar dos outros e esqueci-me de mim mesma. Agora preciso de tempo para mim.

Ele resmungou qualquer coisa sobre egoísmo e saiu da sala batendo com a porta.

Nos dias seguintes senti-me estranha — livre mas também culpada. A culpa era como uma sombra atrás de mim: “E se eles precisarem mesmo? E se algo correr mal?”

Mas resisti.

Comecei a fazer pequenas coisas só para mim: caminhar junto ao rio, ler romances antigos, ir ao cinema sozinha numa tarde chuvosa. Descobri que gostava do silêncio da casa vazia, do cheiro do café acabado de fazer sem pressa.

Aos poucos os meus filhos começaram a perceber que tinham de se desenrascar sozinhos. A Inês aprendeu a organizar melhor os horários do Tiago; o Rui deixou de ligar por tudo e por nada; até o António começou a cozinhar as suas próprias refeições (ainda que mal).

Um dia sentei-me no jardim com um caderno e escrevi: “Quem sou eu?”

Demorei horas a responder.

Sou Teresa: mulher, mãe, avó… mas também sou alguém que gosta de música clássica, de passear à chuva, de rir sozinha das minhas próprias piadas parvas.

Hoje sei que não sou egoísta por querer tempo só para mim. Sou humana.

Às vezes ainda sinto falta daquela azáfama dos dias cheios — mas agora sei apreciar o vazio também.

Sei que muitos vão dizer que uma mãe nunca deixa de ser mãe… Mas será justo esquecer-nos de nós próprias? Quantas mulheres vivem assim — sempre disponíveis para todos menos para si mesmas?

E vocês? Já sentiram este peso? Já tiveram coragem de desligar o telefone e ouvir apenas os vossos próprios pensamentos?