Quando o Meu Pai Voltou Só Por Dinheiro
— Mariana, tens de entender… — a voz do meu pai ecoava pela sala, tensa, quase suplicante, mas eu só conseguia olhar para as mãos dele, pousadas sobre a mesa da cozinha da minha avó, como se aquele gesto lhe desse direito a tudo o que ali estava.
Quinze anos. Quinze anos sem ouvir aquela voz, sem sentir aquele cheiro de tabaco barato misturado com aftershave barato. Quinze anos em que fui filha só da minha mãe, e neta só da minha avó. E agora, ali estava ele, de volta à minha vida, não para me perguntar como estava, não para me abraçar ou sequer pedir desculpa. Estava ali por causa do dinheiro.
A minha mãe estava sentada ao meu lado, os olhos vermelhos de tanto chorar desde o funeral da avó Rosa. Ela nunca gostou de conflitos, mas naquele momento parecia uma leoa a proteger a cria. — António, não tens vergonha? — disse ela, a voz trémula mas firme. — A tua filha não te deve nada. A tua mãe deixou-lhe tudo porque tu nunca quiseste saber dela!
O meu pai olhou para mim, e eu vi nos olhos dele uma mistura de raiva e desespero. — Mariana, eu sou teu pai. Tenho direito à parte da herança. A lei é clara.
A palavra “pai” soou-me estranha. Eu não tinha pai. Tinha um homem que me deixou quando eu tinha cinco anos, que nunca ligou nos meus aniversários, que nunca veio às festas da escola, que nunca me ensinou a andar de bicicleta. O meu pai era uma ausência, um vazio que eu aprendi a preencher com o amor da minha mãe e da minha avó.
— Direito? — perguntei, sentindo as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. — Onde é que estavas quando precisei de ti? Quando a mãe ficou sem trabalho e quase fomos despejadas? Quando a avó ficou doente e eu passei noites sem dormir ao lado dela? Agora apareces porque ouviste falar na casa e no dinheiro?
Ele baixou os olhos. Por um momento, pensei ver arrependimento. Mas foi só por um momento.
— Mariana, eu também tenho problemas. Estou desempregado há meses. Preciso desse dinheiro para recomeçar a minha vida.
A minha mãe levantou-se de repente, empurrando a cadeira para trás com força. — Não tens vergonha! A tua filha não é um banco! — gritou ela.
O silêncio caiu sobre nós como uma nuvem pesada. O relógio da parede marcava as horas devagarinho, como se gozasse connosco.
Lembrei-me de todas as noites em que a avó Rosa me contava histórias sobre o tempo em que era jovem no Alentejo, das tardes em que fazíamos bolos juntas na cozinha pequena e abafada do nosso apartamento em Lisboa. Lembrei-me do cheiro do pão quente, das mãos dela nas minhas, das palavras doces quando eu chorava por causa dos miúdos na escola que gozavam comigo por não ter pai.
— Mariana — disse o meu pai outra vez, agora mais baixo — eu sei que errei. Mas sou teu pai.
Olhei para ele e vi um homem derrotado, envelhecido antes do tempo. Mas também vi o egoísmo de quem só aparece quando precisa.
— Sabes o que é ser pai? — perguntei-lhe. — Ser pai não é só dar o nome ou aparecer quando há dinheiro envolvido. Ser pai é estar lá quando dói, quando é difícil. A avó foi mais mãe e mais pai do que tu alguma vez foste.
Ele levantou-se devagarinho e olhou para mim como se me visse pela primeira vez.
— Mariana… — começou ele, mas não conseguiu acabar.
A minha mãe puxou-me para junto dela e abraçou-me com força. Senti o cheiro do perfume barato dela misturado com lágrimas e tristeza.
O meu pai saiu sem dizer mais nada. Ficámos ali as duas, sozinhas na casa vazia da avó Rosa, rodeadas por móveis antigos e memórias que pareciam pesar toneladas.
Nos dias seguintes, os telefonemas começaram. Primeiro foi ele, depois o advogado dele. Ameaças veladas de tribunal, conversas frias sobre partilhas e direitos legais. Eu sentia-me perdida no meio de papéis e palavras difíceis.
A família começou a dividir-se também. A tia Lurdes dizia que eu devia dar-lhe uma parte para evitar problemas; o tio João dizia que ele não merecia nada; os primos nem sequer ligaram.
As noites tornaram-se longas e cheias de insónia. Sonhava com a avó Rosa a sorrir-me do outro lado da mesa da cozinha, a dizer-me para ser forte e não deixar ninguém tirar-me aquilo que era meu por direito — não só o dinheiro ou a casa, mas as memórias, o amor, tudo aquilo que ela me deu quando ninguém mais quis saber de mim.
Um dia recebi uma carta do tribunal. O meu pai tinha avançado mesmo com o processo. Senti-me traída outra vez. Não bastava ter-me abandonado em criança; agora queria arrancar-me também as últimas raízes da minha infância.
A minha mãe tentou animar-me: — Filha, seja qual for o resultado disto tudo, tu és muito mais do que esta confusão toda. A avó teria orgulho em ti.
Mas eu sentia-me vazia. Comecei a faltar às aulas na faculdade porque não conseguia concentrar-me em nada. Os amigos afastaram-se porque já não sabia rir nem sair à noite como antes.
No dia da audiência no tribunal, olhei para o meu pai do outro lado da sala e vi um estranho. Ele evitava olhar para mim. O juiz falou durante muito tempo sobre direitos legais e testamentos. No fim, decidiu que eu teria de partilhar parte da herança com ele.
Senti raiva, tristeza e um alívio estranho ao mesmo tempo. Era como se finalmente pudesse fechar aquela porta e seguir em frente.
Depois disso nunca mais vi o meu pai. Ele vendeu a parte dele da casa e desapareceu outra vez.
Fiquei com menos do que esperava — metade da casa onde cresci com a avó Rosa já não era minha sozinha — mas fiquei com todas as memórias intactas.
Hoje olho para trás e pergunto-me: valeu a pena lutar tanto por algo material? Ou teria sido melhor deixar ir tudo e tentar perdoar?
Às vezes sento-me na varanda da casa velha e sinto o cheiro das flores do jardim da avó Rosa misturado com o vento fresco de Lisboa ao entardecer. Penso em tudo o que perdi e em tudo o que ganhei.
E pergunto-vos: será que algum dia conseguimos mesmo perdoar quem nos magoou tão fundo? Ou há feridas que nunca saram?