Quando o Amor se Torna Ausência: O Dia em que Fui Deixada Sozinha
— É tudo culpa tua, Maria! — gritou o António, batendo com força a porta da sala. O som ecoou pela casa, misturando-se com o silêncio pesado da noite. Senti o chão fugir-me dos pés. O relógio marcava quase duas da manhã e eu estava sentada à mesa da cozinha, as mãos trémulas sobre a toalha de linho que a minha mãe me oferecera no casamento.
Tentei responder, mas as palavras ficaram presas na garganta. O António olhou-me com um desprezo que nunca lhe tinha visto antes. — Sempre a mesma coisa, Maria. Sempre a tentar controlar tudo, sempre a querer que tudo seja perfeito. Não aguento mais! — disse ele, antes de desaparecer pelo corredor.
Fiquei ali, sozinha, ouvindo os passos dele a afastarem-se. O nosso filho, o Miguel, dormia no quarto ao lado. Tive medo que acordasse e visse o pai assim, tão diferente daquele homem carinhoso que costumava brincar com ele ao domingo de manhã.
Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tinha feito nos últimos anos. Lembrei-me de quando conheci o António na faculdade do Porto. Ele era divertido, cheio de sonhos e promessas. Eu acreditava que juntos podíamos conquistar o mundo. Casámo-nos cedo, talvez cedo demais. A minha mãe avisou-me: — Maria, não te precipites. Mas eu não quis ouvir.
A vida foi-se tornando rotina. Eu trabalhava numa pastelaria do bairro, ele numa empresa de construção civil. O dinheiro nunca chegava para tudo. As contas acumulavam-se na gaveta da cozinha. Mesmo assim, tentei sempre manter a casa limpa, o jantar pronto, o Miguel feliz.
Mas o António começou a chegar cada vez mais tarde. Primeiro dizia que era trabalho, depois deixou de dar explicações. Uma noite, encontrei uma mensagem no telemóvel dele: “Saudades tuas…” Não era para mim. O meu coração gelou.
Confrontei-o dias depois:
— António, quem é a Ana?
Ele desviou o olhar.
— Não é nada do que pensas.
— Então explica-me!
Ele levantou-se da mesa e saiu sem dizer palavra.
A partir daí, tudo mudou. Ele tornou-se frio, distante. Começou a beber mais do que devia. Às vezes chegava a casa e nem olhava para mim ou para o Miguel. Eu tentava conversar:
— António, precisamos falar sobre nós.
Ele respondia sempre:
— Agora não, Maria. Estou cansado.
Os dias passaram assim, um atrás do outro, até àquela noite em que me culpou por tudo. Senti-me tão pequena, tão inútil. Chorei baixinho para não acordar o Miguel.
No dia seguinte, ele fez as malas e saiu de casa sem olhar para trás. Fiquei ali parada à porta, com o Miguel agarrado às minhas pernas a perguntar:
— Mamã, onde vai o pai?
Não soube responder.
Os meses seguintes foram um inferno. Tive de pedir ajuda à minha mãe para tomar conta do Miguel enquanto trabalhava. Os vizinhos cochichavam quando me viam sozinha no café ou no supermercado. Em Portugal ainda se fala muito das mulheres “abandonadas”, como se a culpa fosse sempre nossa.
O Miguel começou a ter pesadelos à noite. Chamava pelo pai e chorava até adormecer nos meus braços. Eu tentava ser forte por ele, mas às vezes fechava-me na casa de banho e chorava até não ter mais lágrimas.
A minha sogra ligou-me uma vez:
— Maria, tu sabes que o António não é fácil… Mas também não devias ter sido tão dura com ele.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Dura? Eu só tentei manter a família unida!
Ela suspirou:
— Os homens são assim… Precisam de espaço.
Desliguei sem responder.
No trabalho também não era fácil. A dona Rosa começou a dar-me menos horas porque dizia que eu andava “com cara de enterro” e isso afastava os clientes. Precisei engolir o orgulho e aceitar trabalhos de limpeza à noite para pagar as contas.
Um dia encontrei o António na rua com a Ana. Riam-se como dois adolescentes. Ele fingiu que não me viu. Senti uma dor tão grande no peito que pensei que ia desmaiar ali mesmo.
O Miguel foi crescendo e aprendendo a viver sem o pai em casa. No início perguntava todos os dias quando é que ele voltava. Depois deixou de perguntar.
A minha mãe foi o meu pilar durante todo este tempo. Muitas vezes sentávamo-nos as duas à mesa da cozinha e ela dizia:
— Maria, tu és forte. Vais conseguir dar a volta por cima.
Eu queria acreditar nela, mas havia dias em que só queria desaparecer.
Uma noite, depois de deitar o Miguel, sentei-me no sofá e olhei para as fotografias antigas do nosso casamento. Vi nos meus olhos uma esperança que já não reconhecia em mim própria.
Comecei então a escrever um diário. Precisava de pôr cá para fora tudo aquilo que sentia: raiva, tristeza, medo… E aos poucos fui percebendo que não era culpada por tudo o que aconteceu. Que fiz o melhor que pude com aquilo que tinha.
O António nunca mais voltou a procurar-nos. Soube pelos vizinhos que foi viver com a Ana para Lisboa e que ela está grávida.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela Maria ingénua que acreditava em contos de fadas. Aprendi da forma mais dura possível que nem sempre o amor é suficiente para manter uma família unida.
Mas também aprendi que sou capaz de sobreviver ao abandono e à solidão. Que consigo criar o meu filho sozinha e dar-lhe amor suficiente pelos dois.
Às vezes pergunto-me: será que algum dia vou voltar a confiar em alguém? Será que existe mesmo felicidade depois de tanta dor?
E vocês? Já sentiram esta solidão? Como deram a volta por cima?