A Quem Pertence Este Lar: A História de Uma Mãe, Um Filho e as Paredes Que Nos Dividem

— Mãe, não devias estar já a dormir? — A voz do Rui ecoou pelo corredor, baixa, mas carregada de impaciência. Eu estava parada junto à porta da cozinha, com a mão trémula na maçaneta, a tentar não fazer barulho. Oiço a voz da Sílvia, a minha nora, sussurrada mas cortante:

— Ela nunca vai aceitar. Mas temos de pensar no nosso futuro, Rui. O apartamento é grande demais para ela sozinha. E tu sabes como está a ficar esquecida…

O sangue gelou-me nas veias. O meu próprio filho, aquele que embalei nos braços, planeava tirar-me de casa. Senti-me pequena, invisível, como se as paredes do apartamento onde vivi mais de quarenta anos se fechassem sobre mim. Não consegui mexer-me. Só queria desaparecer.

Voltei para o meu quarto em silêncio, os passos pesados como chumbo. Sentei-me na cama e olhei para as fotografias na cómoda: o Rui em pequeno, com os joelhos esfolados; o António, o meu marido, já falecido há dez anos, a sorrir num piquenique em Sintra; eu, mais nova, com esperança nos olhos. Agora só restava eu e as paredes frias deste T3 em Benfica.

Na manhã seguinte, tentei agir normalmente. Preparei o café como sempre fiz — uma chávena para mim, outra para o Rui, que agora vivia comigo desde que se separou da primeira mulher. Sílvia vinha cá quase todos os dias, sempre com aquele ar de quem está a fazer um favor ao mundo inteiro.

— Dormiste bem, mãe? — perguntou o Rui, sem me olhar nos olhos.

— Dormi — menti. — E tu?

Ele encolheu os ombros e mergulhou no telemóvel. Sílvia entrou logo a seguir, já com pressa:

— Rui, temos de ir ver aquele lar em Oeiras hoje à tarde. Não te esqueças.

O Rui olhou para mim de relance. Eu fingi não ouvir. Mas por dentro sentia-me a arder de raiva e tristeza.

Depois do almoço, fechei-me na casa de banho e chorei baixinho. Lembrei-me de todas as noites em claro quando o Rui era bebé e tinha febre; das vezes que abdiquei dos meus sonhos para lhe pagar os estudos; das tardes passadas no hospital com o António durante a doença dele. E agora? Agora era um estorvo.

Quando saí da casa de banho, decidi que não ia deixar que me tirassem tudo sem lutar.

À noite, esperei que o Rui estivesse sozinho na sala. Sentei-me ao lado dele no sofá.

— Rui, precisamos de conversar.

Ele suspirou, impaciente:

— O que foi agora, mãe?

— Ouvi-te ontem à noite. Ouvi tudo o que disseste à Sílvia sobre me colocarem num lar e ficarem com o apartamento.

O rosto dele ficou pálido.

— Mãe… não é bem assim…

— Então explica-me como é — interrompi-o, sentindo as lágrimas a quererem saltar dos olhos. — Depois de tudo o que fiz por ti… é assim que me agradeces?

Ele ficou calado durante uns segundos eternos.

— Não percebes que estamos preocupados contigo? Estás sozinha aqui… às vezes esqueces-te das coisas…

— Esquecer-me? Rui, tenho 74 anos, não sou inválida! Só porque sou velha já não sirvo para nada? Queres despachar-me para um lar como se fosse um móvel velho?

Ele levantou-se abruptamente:

— Não digas disparates! A Sílvia só quer ajudar…

— A Sílvia só quer o apartamento! — gritei-lhe. — Achas que não vejo? Desde que casaste com ela que só pensa no dinheiro! Nunca gostou de mim!

O Rui ficou vermelho de raiva:

— Não fales assim da minha mulher!

— E tu? Vais mesmo deixar que ela decida o que fazer comigo?

Ele saiu da sala sem dizer mais nada. Fiquei ali sentada, a tremer de indignação e medo.

Nos dias seguintes, mal falámos um com o outro. Sílvia continuava a vir cá, cada vez mais autoritária.

— Dona Teresa, já pensou bem? No lar teria companhia da sua idade… Aqui está sempre sozinha.

Olhei-a nos olhos:

— Prefiro estar sozinha na minha casa do que rodeada de estranhos num sítio onde ninguém me conhece.

Ela revirou os olhos:

— O Rui só quer o melhor para si…

— O Rui devia era lembrar-se do que é ser filho — respondi-lhe.

Comecei a sentir-me cada vez mais isolada. As vizinhas já não vinham tanto cá a casa; algumas mudaram-se, outras estavam doentes. Os meus netos raramente apareciam — estavam sempre ocupados com a escola ou os amigos.

Uma tarde, fui ao café da esquina para espairecer. A dona Rosa percebeu logo que algo não estava bem.

— Então, Teresa? Estás tão calada…

Desabafei tudo com ela. Ela apertou-me a mão por cima da mesa:

— Não deixes que te tirem aquilo que é teu. Já viste quantas mulheres da nossa idade acabam sozinhas num lar porque os filhos querem as casas?

Senti um nó na garganta. Não queria ser mais uma estatística.

Nessa noite tomei uma decisão: fui ao advogado do bairro no dia seguinte e pedi-lhe para rever o testamento e garantir que ninguém podia tirar-me de casa enquanto eu fosse viva.

Quando contei ao Rui o que tinha feito, ele ficou furioso:

— Achas mesmo que eu te ia pôr na rua?

Olhei-o nos olhos:

— Não sei no que acreditar agora. Mas prefiro prevenir do que remediar.

Ele saiu porta fora sem dizer mais nada. Sílvia ligou-me nesse mesmo dia:

— Acha justo pôr o Rui nesta posição? Ele só quer ajudar!

— Se ele quisesse ajudar, respeitava-me — respondi-lhe antes de desligar.

Os dias passaram lentos e pesados. O silêncio entre mim e o Rui tornou-se quase insuportável. Mas eu sentia-me mais segura sabendo que tinha protegido aquilo pelo qual tanto lutei.

No Natal desse ano, tentei reunir a família em casa como sempre fizera. Só vieram os netos e a filha mais velha do Rui do primeiro casamento. O Rui apareceu tarde e saiu cedo; Sílvia nem apareceu.

Depois do jantar, sentei-me sozinha na sala iluminada pelas luzes da árvore de Natal e pensei em tudo o que tinha perdido: o marido, os amigos, até a relação com o meu filho parecia ter morrido um pouco naquele outono fatídico.

Mas também pensei na força que encontrei dentro de mim quando mais precisei dela. Não deixei que me tirassem a dignidade nem o direito ao meu lar.

Agora passo os dias entre livros antigos e memórias felizes e tristes. Às vezes pergunto-me se fiz bem em lutar tanto por estas paredes ou se devia ter cedido para manter a paz na família. Mas depois lembro-me: se não lutarmos por nós próprios quando ninguém mais luta… quem lutará?

E vocês? O que fariam no meu lugar? Vale mais a família ou a nossa própria dignidade?