Quando a Minha Sogra Veio para Ficar: O Verão em Que Perdi e Encontrei a Mim Mesma

— Não me peças para aceitar isto, João. Não consigo — disse-lhe, com a voz trémula, enquanto segurava a chávena de café com tanta força que pensei que se partiria nas minhas mãos.

O João olhou para mim, cansado. — A minha mãe não tem para onde ir este verão. O pai foi-se embora, sabes bem. Ela precisa de nós.

Precisa de nós. Mas e eu? Quem precisa de mim? Senti o peito apertar-se, como se o ar tivesse desaparecido da cozinha. A casa era pequena, um T2 em Benfica, paredes finas e janelas que deixavam entrar o barulho da rua. Era o nosso refúgio, o nosso espaço. E agora ia ser invadido por aquela presença constante, aquela mulher que nunca me aceitou verdadeiramente.

A primeira semana foi um teste à minha sanidade. A Dona Lurdes chegou com duas malas enormes e um saco de compras cheio de tupperwares. — Trouxe comida feita, para não teres trabalho — disse-me, com aquele sorriso passivo-agressivo que só as sogras portuguesas sabem dar. — O João gosta tanto do meu arroz de pato.

O João sorriu-lhe, agradecido. Eu sorri também, mas por dentro sentia-me invisível. A Dona Lurdes ocupou a casa como se fosse dela: mudou os móveis da sala, criticou o meu tempero na sopa, reclamou do pó nas estantes. — No meu tempo, uma mulher sabia cuidar da casa — murmurava alto o suficiente para eu ouvir.

À noite, no quarto, tentei falar com o João.

— Não aguento mais. Ela não me respeita, João. Sinto-me uma estranha na minha própria casa.

Ele suspirou. — É só por uns meses. Aguenta mais um bocadinho, por mim.

Por ele. Sempre por ele. E eu? Onde ficava eu nesta equação?

Os dias arrastavam-se. A Dona Lurdes acordava cedo e fazia barulho na cozinha, batendo panelas e abrindo armários como se procurasse algo que eu tivesse escondido de propósito. Quando eu chegava do trabalho, encontrava a casa diferente: as minhas plantas mudadas de sítio, as minhas roupas dobradas de outra maneira, até os quadros trocados de parede.

— Não leves a mal, filha — dizia ela — mas assim fica mais bonito.

Uma noite, depois de um jantar em que ela criticou o meu bacalhau à Brás (“No meu tempo não se usava tanta cebola!”), explodi.

— Basta! Esta é a minha casa! Eu faço as coisas à minha maneira!

O silêncio caiu como uma pedra. O João olhou para mim como se eu tivesse perdido a cabeça. A Dona Lurdes levou a mão ao peito, ofendida.

— Só estou a tentar ajudar…

Levantei-me da mesa e fui fechar-me na casa de banho. Sentei-me no chão frio e chorei baixinho, para ninguém ouvir. Senti-me uma criança birrenta, mas também uma mulher cansada de ser sempre a compreensiva, a paciente, a que cede.

No dia seguinte tentei pedir desculpa ao João.

— Não percebes que ela está a tentar ajudar? — disse ele, sem me olhar nos olhos.

— Não percebes tu que eu estou a sufocar? — respondi-lhe.

As semanas passaram assim: silêncios pesados, olhares de lado, pequenas guerras frias à volta dos tachos e das panelas. Comecei a sair mais tarde do trabalho só para não ter de ir para casa cedo. Sentia-me culpada por desejar que ela fosse embora, mas também revoltada por ninguém perceber o meu lado.

Um sábado à tarde ouvi-a ao telefone com uma amiga:

— A minha nora não sabe ser dona de casa… O João merece melhor.

Foi como levar um murro no estômago. Fui ter com ela à sala.

— Dona Lurdes, ouvi o que disse. Se acha mesmo isso, porque é que está aqui?

Ela ficou vermelha. — Eu só quero o melhor para o meu filho.

— E eu? Não sou nada nesta família?

Ela encolheu os ombros e saiu da sala sem responder.

Nessa noite dormi mal. Sonhei que estava presa numa casa cheia de portas trancadas e janelas fechadas. Quando acordei, decidi que não podia continuar assim.

Fiz as malas em silêncio na manhã seguinte. O João acordou com o barulho do fecho da mala.

— O que estás a fazer?

Olhei-o nos olhos pela primeira vez em semanas.

— Estou a escolher-me a mim própria pela primeira vez desde que casámos.

Ele ficou parado à porta do quarto, sem saber o que dizer. A Dona Lurdes apareceu atrás dele, com ar vitorioso e ao mesmo tempo surpreendido.

— Vais mesmo deixar o João sozinho?

— Não estou a deixar ninguém sozinho. Estou a deixar de estar sozinha comigo mesma.

Saí de casa com a mala na mão e o coração aos pulos. Fui para casa da minha irmã em Almada. Chorei tudo o que tinha para chorar naquela noite. No dia seguinte acordei leve pela primeira vez em meses.

O João ligou-me várias vezes nos dias seguintes. Pediu-me para voltar, prometeu que ia falar com a mãe dele, que ia mudar tudo. Mas eu sabia que não podia voltar atrás sem perder quem eu era.

A Dona Lurdes acabou por ir embora duas semanas depois. O João ficou sozinho no apartamento e mandou-me mensagens longas sobre saudade e arrependimento. Eu respondi-lhe apenas uma vez:

— Quando aprenderes a pôr limites à tua mãe e a respeitar os meus, talvez possamos tentar outra vez.

Passaram-se meses até voltarmos a falar cara a cara. Ele pediu desculpa, disse que percebeu finalmente o que eu sentia. Mas já era tarde demais: eu tinha encontrado uma força dentro de mim que nunca pensei ter.

Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Setúbal. Às vezes sinto falta do João, mas nunca mais senti falta de mim mesma.

Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres portuguesas vivem assim caladas? Quantas sacrificam quem são para agradar à família do marido? Será preciso perder tudo para nos encontrarmos? E vocês? Já tiveram de escolher entre vocês próprias e a vossa família?