Aos 62 Anos, Redescobri o Amor no Clube de Viajantes de Lisboa

— Dona Teresa, desculpe, este lugar está ocupado? — perguntou uma voz masculina, hesitante, enquanto eu tentava esconder as mãos trémulas debaixo da mesa. Olhei para cima, surpreendida. Um homem de cabelo grisalho, sorriso tímido e um mapa amarrotado nas mãos fitava-me com expectativa.

— Não, pode sentar-se — respondi, tentando soar indiferente, mas sentindo o coração acelerar como há muito não sentia.

O clube de viajantes de Lisboa estava cheio naquela tarde de sexta-feira. O cheiro a chá de cidreira misturava-se com o aroma forte do café acabado de fazer. Eu tinha ido ali apenas para ouvir uma palestra sobre a Islândia — nada mais. Não queria conversar, não queria ser notada. Aos 62 anos, depois de uma vida inteira dedicada aos outros, sentia-me invisível e, confesso, confortável assim.

Mas aquele homem — António, como vim a saber minutos depois — não parecia disposto a respeitar o meu desejo de anonimato.

— Gosta de viajar? — perguntou ele, desenrolando o mapa sobre a mesa e afastando distraidamente o copo vazio que alguém deixara ali.

Sorri sem mostrar os dentes. — Já gostei mais. Agora viajo pouco. Os meus filhos dizem que é perigoso andar sozinha por aí.

Ele riu-se, um riso grave e sincero. — Os meus dizem o mesmo. Mas se fosse por eles, eu já estava fechado num lar há anos.

O comentário arrancou-me uma gargalhada inesperada. Senti-me, por um momento, cúmplice daquele estranho.

— Para onde gostaria de ir se pudesse escolher qualquer lugar? — insistiu António, apontando para o mapa.

Olhei para as linhas coloridas, os nomes exóticos. Hesitei. — Sempre sonhei ver as auroras boreais. Mas agora…

— Agora? — incentivou ele.

— Agora sonho mais com paz do que com aventura.

Ele ficou em silêncio por um instante. Depois pousou a mão sobre o mapa e olhou-me nos olhos.

— Às vezes a paz está onde menos esperamos. Ou com quem menos esperamos.

A frase ficou a ecoar na minha cabeça durante toda a palestra. Quase não ouvi nada sobre vulcões ou glaciares islandeses. Só conseguia pensar naquele homem que, sem saber, tinha aberto uma janela num quarto onde há muito tempo só havia cortinas fechadas.

Quando a sessão terminou, António convidou-me para um café. Hesitei. A minha filha, Inês, ligava-me sempre às 19h para saber se eu já tinha jantado. O meu neto esperava-me para ver desenhos animados. Mas naquele momento, pela primeira vez em muitos anos, quis fazer algo só para mim.

— Aceito — disse, surpreendendo-me com a firmeza da minha voz.

Fomos até à pastelaria da esquina. António contou-me que era viúvo há cinco anos e que desde então tentava preencher os dias com viagens e encontros como aquele. Falou dos filhos distantes, das saudades dos netos e dos silêncios longos em casa.

— Sabe o que é pior do que estar sozinho? — perguntou ele, olhando para o fundo da chávena.

Abanei a cabeça.

— É sentir-se sozinho mesmo quando está rodeado de gente.

A frase atingiu-me como um murro no estômago. Pensei nos domingos em casa da Inês: risos das crianças, televisão alta, conversas cruzadas… e eu ali, sempre à margem, sempre a mais.

Naquela noite voltei para casa diferente. O telefone tocou às 19h em ponto.

— Mãe, já jantaste? — perguntou Inês do outro lado.

— Ainda não. Fui tomar café com um amigo — respondi, tentando soar casual.

Do outro lado ouvi um silêncio pesado.

— Um amigo? Quem?

— Alguém que conheci hoje no clube de viajantes.

— Mãe… tens de ter cuidado. Não conheces essa pessoa! E se for alguém com más intenções?

Suspirei. Sempre a mesma preocupação excessiva. Sempre o medo de que eu fizesse algo fora do guião que ela tinha escrito para mim desde que fiquei viúva.

— Inês, tenho 62 anos. Sei cuidar de mim.

Ela não respondeu logo. Depois despediu-se apressada, dizendo que me ligava no dia seguinte.

Nos dias seguintes encontrei-me mais vezes com António. Passeámos pelo Jardim da Estrela, fomos ao mercado da Ribeira e até apanhámos o elétrico 28 só porque ele nunca tinha feito o percurso completo. Rimos como adolescentes e chorámos como velhos amigos ao partilharmos memórias de perdas e sonhos adiados.

Mas nem tudo era fácil. A minha família começou a notar as mudanças: os sorrisos inesperados, as saídas frequentes, o perfume novo que comprei só porque António disse que gostava do cheiro a jasmim.

Numa tarde chuvosa de domingo, Inês apareceu em minha casa sem avisar. Encontrou-me a preparar um bolo de laranja para levar ao António.

— Mãe, precisamos de conversar — disse ela, séria.

Sentei-me à mesa e esperei pelo sermão habitual.

— Não percebo esta tua necessidade de… recomeçar agora. Não te chega a família? Os netos? Tens medo de ficar sozinha?

Olhei-a nos olhos e vi ali a menina assustada que sempre quis proteger do mundo. Mas também vi uma mulher incapaz de aceitar que eu era mais do que mãe ou avó — era ainda uma mulher inteira, com desejos e sonhos próprios.

— Inês… Eu amo-vos muito. Mas também preciso de me amar a mim mesma. Preciso de sentir que ainda estou viva.

Ela chorou baixinho e eu abracei-a como quando era pequena. Não sei se me entendeu naquele dia. Talvez nunca venha a entender completamente.

Com o tempo, os meus netos começaram a gostar do “senhor António” que lhes trazia histórias de terras distantes e ensinava truques com moedas antigas. A família foi-se ajustando à nova realidade — uns dias melhor do que outros.

Houve momentos difíceis: discussões acesas ao jantar sobre prioridades; olhares reprovadores dos vizinhos; comentários maldosos das amigas da igreja sobre “mulheres da minha idade” que ainda acreditam no amor.

Mas houve também tardes felizes: piqueniques no parque Eduardo VII; noites de fado improvisado na sala; viagens curtas até Sintra só para ver o mar ao pôr-do-sol.

Hoje olho para trás e percebo que nunca é tarde para recomeçar. Nunca é tarde para abrir uma janela e deixar entrar ar fresco na alma.

Às vezes pergunto-me: quantas vidas cabem numa só vida? Quantas vezes podemos apaixonar-nos antes do fim?

E vocês? Já tiveram coragem de recomeçar quando todos diziam que era tarde demais?