Porquê é sempre o Miguel? A história de uma filha esquecida

— Porquê é sempre o Miguel? — gritei, com a voz embargada, enquanto a loiça tremia nas minhas mãos. O silêncio pesado da cozinha foi interrompido apenas pelo som do relógio de parede, marcando cada segundo da minha indignação.

A minha mãe, sentada à mesa, olhou-me com aquele olhar cansado, mas ainda assim duro. — Ele precisa mais de mim, Inês. Sempre precisou. Tu és forte, tu aguentas tudo.

A palavra “forte” soava-me como uma sentença. Desde pequena que ouvia isto: “A Inês é desenrascada, não precisa de colo.” O Miguel era o menino de ouro, o filho que nunca fazia nada de mal, mesmo quando partiu o vidro da sala ou chegou a casa às quatro da manhã. Eu? Bastava esquecer-me de arrumar os sapatos para ouvir um sermão.

Agora, com trinta e dois anos, voltei à casa dos meus pais porque a minha mãe adoeceu. O meu pai morreu há cinco anos e o Miguel… bem, o Miguel está em Lisboa, com uma carreira brilhante e uma família perfeita. Só aparece para os jantares de Natal ou quando precisa de dinheiro.

— Inês, não grites — pediu a minha mãe, tossindo. — O Miguel tem muito trabalho…

— E eu não? — interrompi, sentindo as lágrimas a quererem saltar. — Também tenho uma vida. Também tenho contas para pagar. Mas sou sempre eu que fico.

Ela desviou o olhar para a chávena de chá, como se ali encontrasse as respostas que nunca me deu. Senti-me tão sozinha naquele momento que quase desejei poder desaparecer.

Lembro-me de ser miúda e esperar que ela viesse ao meu quarto dar-me um beijo de boa noite. Mas ela estava sempre ocupada com o Miguel: “Ele tem medo do escuro, Inês. Tu és crescida.” Cresci rápido demais.

O telefone tocou. Era o Miguel, claro. Atendi antes que a minha mãe pudesse sequer estender a mão.

— Olá, mana! Como está a mãe? — perguntou ele, com aquela voz leve de quem nunca carrega peso nenhum.

— Está igual — respondi seca. — Quando é que vens?

— Esta semana é impossível… Tenho reuniões atrás de reuniões. Mas no próximo fim de semana talvez consiga passar aí umas horas.

Horas. Para ele, a nossa mãe valia horas. Para mim, valia noites sem dormir, idas ao hospital, discussões com médicos e contas para pagar.

Desliguei sem dizer adeus. A minha mãe olhou-me como se eu fosse um monstro.

— Não devias falar assim ao teu irmão.

— E ele devia falar assim comigo? — perguntei, mas ela já não me ouvia. Estava perdida nos seus pensamentos ou talvez apenas cansada de mim.

Os dias passaram lentos e pesados. A doença da minha mãe avançava e eu sentia-me cada vez mais presa àquela casa onde nunca fui realmente feliz. Os vizinhos vinham trazer bolos e palavras ocas: “És uma filha tão dedicada!” Se ao menos soubessem…

Uma noite, depois de lhe dar os medicamentos e arrumar a cozinha, sentei-me no sofá e chorei em silêncio. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim: raiva do Miguel por nunca estar presente; raiva da minha mãe por nunca me ter escolhido; raiva de mim própria por ainda querer ser escolhida.

No sábado seguinte, o Miguel apareceu finalmente. Trazia flores caras e um sorriso ensaiado.

— Olá, mãe! Olá, mana! — disse ele, abraçando-nos como se estivéssemos num anúncio de Natal.

A minha mãe iluminou-se toda. — O meu menino! — exclamou, esquecendo-se por momentos das dores e do cansaço.

Eu fiquei ali parada, a ver o teatro desenrolar-se à minha frente.

Depois do almoço, enquanto ele fazia selfies com a mãe para pôr no Facebook, chamei-o à parte.

— Preciso falar contigo.

Ele olhou-me com impaciência. — Agora?

— Agora. Preciso que fiques cá uns dias. Eu preciso descansar. Preciso tratar da minha vida também.

Ele suspirou como se eu lhe tivesse pedido um rim. — Inês… Sabes que não posso faltar ao trabalho assim do nada. E a Rita (a mulher dele) não consegue ficar sozinha com as miúdas tanto tempo…

— E eu? Achas que isto é fácil para mim?

Ele encolheu os ombros. — Sempre foste mais forte do que eu.

As palavras dele soaram como um eco das da minha mãe. Senti-me engolida por uma onda de frustração tão grande que tive vontade de gritar.

Naquela noite, depois de todos irem dormir, sentei-me à mesa da cozinha com um copo de vinho barato e escrevi uma carta à minha mãe. Não sabia se alguma vez lha iria entregar:

“Mãe,
Nunca fui a tua preferida e tentei aceitar isso durante anos. Mas dói saber que nunca viste o quanto precisei de ti. Agora estou aqui porque não consigo ser outra coisa senão tua filha — mesmo quando isso me custa tudo o resto que sou.”

Guardei a carta na gaveta dos talheres e fui dormir.

Os dias seguintes foram iguais: Miguel voltou para Lisboa; eu continuei a cuidar da minha mãe; os vizinhos continuaram a elogiar-me por ser tão dedicada; e eu continuei a sentir-me invisível.

Uma tarde, enquanto lhe dava banho, a minha mãe olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

— Desculpa, Inês — murmurou ela, com lágrimas nos olhos. — Sei que nunca te dei o que precisavas.

Fiquei sem palavras. Quis abraçá-la mas não consegui mexer-me. As lágrimas correram-me pela cara abaixo sem pedir licença.

— Eu só queria ser vista — sussurrei.

Ela apertou-me a mão com a pouca força que tinha. — Sempre te vi… mas tinha medo de te perder se não fosses forte.

Nesse momento percebi que talvez nunca tivesse mesmo escolha: fui forte porque tive de ser; fui invisível porque era mais fácil para todos assim.

Quando ela morreu, algumas semanas depois, foi o Miguel quem fez os discursos bonitos no funeral e recebeu os abraços dos familiares distantes. Eu fiquei sentada num canto da igreja, com as mãos geladas e o coração vazio.

Agora estou sozinha nesta casa cheia de memórias e perguntas sem resposta. Será que algum dia vou conseguir perdoar? Será que alguma vez vou deixar de querer ser escolhida?

E vocês? O que fariam no meu lugar?