Regresso a Casa com o Coração Partido – A História de Miguel
— Miguel, não voltes a pôr os pés nesta casa! — gritou a Ana, com os olhos vermelhos de raiva e lágrimas. O som da porta a bater ecoou pelo prédio antigo de Benfica, tão alto que até o senhor Joaquim do rés-do-chão deve ter acordado. Fiquei ali, parado no patamar, com uma mala na mão e o coração a latejar no peito como se quisesse saltar fora.
Como é que cheguei aqui? Há dois meses atrás, eu e a Ana ríamos juntos ao jantar, fazíamos planos para as férias no Algarve e discutíamos apenas sobre quem ia buscar o pão à padaria do senhor Américo. Mas tudo mudou naquela noite em que ela encontrou as mensagens da Sofia no meu telemóvel. Não eram inocentes. Não eram só palavras. Eram promessas, desejos e recordações de um passado que eu nunca consegui enterrar.
— Como pudeste? — perguntou-me ela, voz embargada, quando me confrontou na cozinha. — Depois de tudo o que passámos juntos…
Não soube responder. Fiquei ali, calado, a olhar para o chão de mosaico gasto, enquanto ela chorava e atirava as minhas roupas para dentro da mala. O nosso cão, o Tobias, olhava de um lado para o outro, sem perceber porque é que de repente tudo estava tão frio.
A minha mãe sempre disse que eu era bom rapaz, mas fraco de carácter. Talvez tivesse razão. Cresci num T2 em Chelas, filho único de pais trabalhadores — o meu pai era motorista da Carris, a minha mãe empregada de limpeza na escola primária. Sempre me ensinaram a ser honesto, mas nunca me ensinaram a lidar com os meus próprios desejos e inseguranças.
Quando conheci a Ana na faculdade, achei que tinha encontrado o meu porto seguro. Ela era tudo o que eu não era: decidida, corajosa, cheia de sonhos. Juntos comprámos um apartamento pequeno em Benfica, com vista para o parque. Os primeiros anos foram felizes. Mas depois vieram as contas para pagar, as horas extra no escritório, as discussões sobre dinheiro e sobre filhos — ela queria já, eu dizia sempre “para o ano”.
A Sofia apareceu numa dessas fases cinzentas. Era colega do trabalho novo e tinha um sorriso fácil. Começámos por almoçar juntos, depois vieram as mensagens à noite, os cafés às escondidas… Nunca chegou a acontecer nada físico entre nós, mas as palavras podem ser tão cortantes como facas.
Naquela noite em que fui expulso de casa, liguei à minha mãe. Ela atendeu ao segundo toque.
— Miguel? Está tudo bem?
— Posso ficar aí uns dias?
— Claro que sim, filho. O teu quarto está como deixaste.
O caminho até Chelas pareceu-me mais longo do que nunca. No autocarro 755, olhei pela janela e vi Lisboa a passar devagar: os prédios antigos, os grafitis nos muros, as luzes dos carros a desfocar-se nos meus olhos marejados.
Em casa dos meus pais senti-me outra vez um miúdo perdido. A minha mãe fez-me chá e torradas como quando eu tinha febre em pequeno. O meu pai não disse nada durante dois dias — só me olhava por cima do jornal com aquele ar sério dele.
Na terceira noite, depois do jantar, ele sentou-se ao meu lado na varanda.
— Sabes, Miguel… A vida não é fácil para ninguém. Mas fugir dos problemas nunca resolveu nada.
— Eu não fugi… — tentei justificar-me.
— Fugiste de ti próprio. E agora tens de decidir quem queres ser.
As palavras dele ficaram-me a ecoar na cabeça durante semanas. Tentei ligar à Ana várias vezes — ela não atendeu. Mandei mensagens à Sofia a dizer que não queria mais nada com ela. No trabalho andava distraído; o chefe chamou-me ao gabinete duas vezes por causa dos erros nos relatórios.
Os meus amigos começaram a afastar-se também. O João dizia que eu precisava de “homem para homem”; a Marta dizia que eu devia pedir desculpa à Ana e tentar reconquistá-la. Mas como se pede desculpa por destruir o coração de alguém?
Uma noite, depois de mais uma discussão com a minha mãe sobre o futuro — ela queria saber quando é que eu ia arranjar outro sítio para viver — decidi sair para apanhar ar. Caminhei até ao miradouro da Penha de França e sentei-me num banco a olhar para as luzes da cidade.
Ao meu lado estava um senhor idoso a ler um livro. Olhou para mim e sorriu.
— Está tudo bem consigo?
— Não sei… Acho que perdi tudo.
Ele fechou o livro devagar.
— Às vezes é preciso perdermos tudo para percebermos o que realmente importa.
Ficámos ali em silêncio durante uns minutos. Depois ele levantou-se e foi embora, deixando-me sozinho com os meus pensamentos.
No dia seguinte acordei com uma decisão: precisava de pedir desculpa à Ana cara a cara. Fui até ao nosso antigo apartamento e esperei por ela à porta do prédio. Quando ela chegou, hesitou ao ver-me.
— O que fazes aqui?
— Preciso de te pedir desculpa. Não espero que me perdoes… Só quero que saibas que me arrependo mesmo do que fiz.
Ela ficou calada durante uns segundos longos demais.
— Dói muito, Miguel. Não sei se algum dia vou conseguir confiar em ti outra vez.
— Eu percebo… Só queria dizer-te isso.
Ela entrou no prédio sem olhar para trás. Fiquei ali parado mais uns minutos antes de voltar para casa dos meus pais.
Os meses seguintes foram duros. Procurei ajuda num psicólogo do centro de saúde — nunca pensei precisar disso, mas ajudou-me a perceber porque é que tinha medo de compromissos reais. Comecei a correr todas as manhãs no Parque das Nações para limpar a cabeça. Aos poucos fui reconstruindo a minha vida: arranjei um quarto numa casa partilhada em Arroios, voltei a sair com amigos antigos e comecei a tocar guitarra outra vez nas noites de sexta-feira num bar pequeno do Bairro Alto.
Um dia recebi uma mensagem da Ana: “Espero que estejas bem.” O coração bateu mais forte — mas respondi apenas: “Obrigado. Espero que tu também.” Percebi nesse momento que já não precisava dela para me sentir inteiro.
A Sofia também tentou reaproximar-se algumas vezes, mas recusei sempre educadamente. Aprendi finalmente a pôr limites e a respeitar-me.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde aquela noite em Benfica. Ainda sinto saudades do Tobias e das manhãs preguiçosas ao lado da Ana — mas aprendi a viver comigo próprio antes de tentar viver com outra pessoa.
Às vezes pergunto-me: quantos de nós já destruímos algo bonito por medo ou insegurança? Será possível recomeçar verdadeiramente depois de magoarmos quem amamos? Gostava de saber o que pensam…