Entre o Amor e a Lealdade: O Dia em que o Meu Mundo Ruiu
— Não vou repetir, Sofia. Ou escolhes a tua irmã, ou escolhes a nossa família — disse o Rui, com a voz tensa, os olhos fixos nos meus como se procurasse uma resposta que eu própria não sabia dar.
O silêncio caiu pesado na sala. O relógio da parede marcava quase meia-noite, mas eu sentia que o tempo tinha parado. Oiço ainda o eco da porta do quarto da Leonor a fechar-se, a nossa filha de oito anos, que provavelmente já percebia mais do que devia.
A minha cabeça girava. A Inês, a minha irmã mais nova, sempre foi o furacão da família. Desde pequena, metia-se em sarilhos: fugiu de casa aos dezassete, voltou grávida aos vinte, e agora, aos trinta e dois, estava outra vez em apuros. Desta vez era sério: dívidas acumuladas, ameaças de despejo, e um filho de cinco anos, o Tiaguinho, que não tinha culpa nenhuma.
— Rui, por favor… — tentei argumentar, mas ele cortou-me a palavra.
— Sofia, já chega! Já lhe demos dinheiro antes. Já a deixaste ficar cá em casa quando ela foi despejada da última vez. E depois? Voltou tudo ao mesmo. Não podemos continuar a viver assim! — O tom dele era duro, mas eu sabia que vinha de um lugar de cansaço e frustração.
Sentei-me no sofá, as mãos trémulas. Lembrei-me de quando éramos pequenas e a Inês me puxava pela mão para irmos brincar ao jardim da avó. Sempre fui eu a protegê-la, mesmo quando ela fazia asneiras. Agora era diferente. Agora havia contas para pagar, uma filha para criar e um casamento que sentia a desmoronar-se.
Na manhã seguinte, acordei com uma mensagem da Inês: “Mana, preciso mesmo de ti. Não tenho para onde ir. O Tiaguinho está assustado. Por favor.” Senti um aperto no peito. Fui até à cozinha e encontrei o Rui a preparar café.
— Recebi mensagem da Inês — disse baixinho.
Ele pousou a chávena com força na bancada.
— Sofia…
— Ela não tem ninguém…
— E nós? E a Leonor? Achas justo ela crescer no meio deste caos? — A voz dele tremeu um pouco.
Fiquei sem resposta. Era verdade: a Leonor já perguntava porque é que o primo estava sempre triste, porque é que a tia chorava tanto. E eu? Eu sentia-me dividida ao meio.
No trabalho não conseguia concentrar-me. A minha chefe, Dona Teresa, chamou-me ao gabinete.
— Sofia, está tudo bem? Pareces distante.
Quase chorei ali mesmo. Contei-lhe tudo, ou quase tudo. Ela ouviu-me com atenção e disse:
— Às vezes temos de pôr limites à família. Não é egoísmo, é sobrevivência.
Mas como é que se põem limites à própria irmã?
À noite, depois de deitar a Leonor, sentei-me com o Rui na sala. Ele estava calado, os olhos presos à televisão desligada.
— Não consigo deixar a Inês na rua — disse finalmente.
Ele suspirou.
— E eu não consigo viver sempre à espera do próximo desastre dela. Sofia… eu amo-te. Mas isto está a destruir-nos.
As lágrimas correram-me pelo rosto. Senti-me egoísta por querer ajudar a minha irmã e injusta por exigir tanto do Rui.
No dia seguinte fui ter com a Inês ao café da esquina. Ela estava magra, olheiras fundas, o Tiaguinho agarrado à saia dela.
— Mana… — murmurou ela, os olhos vermelhos.
— Inês, não posso trazer-te para casa desta vez — disse-lhe com dificuldade.
Ela olhou para mim como se eu tivesse acabado de lhe dar uma bofetada.
— Então é isso? Vais virar-me as costas como toda a gente?
— Não é isso! Eu… posso ajudar-te a procurar um quarto para alugar… posso ficar com o Tiaguinho uns dias… mas não posso pôr em risco a minha família outra vez.
Ela levantou-se de rompante.
— Família? Eu sou tua família! Sempre foste tu a única pessoa que nunca me abandonou!
O Tiaguinho começou a chorar baixinho. Senti-me miserável.
Voltei para casa destroçada. O Rui esperava-me na sala.
— Como correu?
— Mal… — respondi apenas.
Durante dias mal falámos um com o outro. A Leonor começou a perguntar porque é que eu chorava à noite. O Rui dormia no sofá. Senti que estava a perder tudo: a irmã, o marido, até a filha parecia distante.
Uma noite recebi uma chamada do hospital: a Inês tinha sido internada por exaustão e ansiedade. Fui ter com ela imediatamente. Quando cheguei ao quarto do hospital, ela olhou para mim com olhos vazios.
— Desculpa — sussurrou ela. — Só queria sentir que ainda tinha alguém do meu lado.
Abracei-a como há muito não fazia. Senti o peso dos anos e das escolhas erradas entre nós.
O Rui apareceu pouco depois. Olhou para mim e depois para a Inês.
— Não podemos continuar assim — disse ele calmamente. — Mas também não podemos fingir que ela não existe.
Foi nesse momento que percebi: talvez não houvesse uma solução perfeita. Talvez amar fosse isto mesmo — tentar equilibrar o impossível.
Ajudámos a Inês a encontrar um pequeno apartamento social e arranjámos apoio psicológico para ela e para o Tiaguinho. O Rui voltou para casa; demorou tempo até voltarmos a ser próximos como antes. A Leonor desenhou uma casa com todos juntos e colou-a no frigorífico.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que fiz bem? Será que há limites para o amor à família? Ou será que amar é aceitar as imperfeições dos outros… mesmo quando nos magoam?
E vocês? Até onde iriam por quem amam?