O aroma do pão quente e o peso das palavras caladas
— Outra vez pão, Mariana? — A voz do Rui cortou o silêncio da cozinha como uma faca afiada. O cheiro quente do pão acabado de sair do forno ainda pairava no ar, misturando-se com a amargura das suas palavras. Eu estava de costas para ele, a tentar esconder as lágrimas que ameaçavam cair. Não era sobre o pão, nunca foi sobre o pão.
— Se não gostas, faz tu o jantar — respondi, a voz mais trémula do que queria admitir. O Rui largou o jornal na mesa com um estrondo, fazendo estremecer os copos. O nosso filho, Tiago, olhou-nos de soslaio, os olhos arregalados, a mastigar em silêncio.
A verdade é que eu já não sabia quem era aquela mulher que todos os dias se levantava às seis da manhã para preparar pequenos-almoços, levar o Tiago à escola, correr para o trabalho no hospital e ainda tentar manter uma casa minimamente arrumada. Tudo para ouvir, ao fim do dia, que o pão estava demasiado escuro ou que a sopa sabia a pouco.
— Mariana, não é só o pão. É tudo! — disse ele, levantando-se abruptamente. — Chego a casa e parece que estou num hotel barato. Tu estás sempre cansada, sempre ausente. Quando foi a última vez que jantámos juntos sem discussões?
Senti o peito apertar-se. Quis gritar-lhe que eu também sentia falta dele, de nós. Que as noites em que adormecia sozinha eram tantas como as dele. Mas calei-me. Como sempre.
A discussão arrastou-se pela noite dentro. Palavras duras foram ditas, portas bateram. O Tiago fechou-se no quarto com os fones nos ouvidos, fingindo que não ouvia nada. Eu fiquei na cozinha, a olhar para o pão queimado e para as migalhas espalhadas na bancada. Senti-me tão pequena.
Lembrei-me da minha mãe, da forma como ela se anulava pelo meu pai. Sempre pronta a ceder, a calar-se para evitar conflitos. Prometi a mim mesma que nunca seria assim. Mas ali estava eu, trinta e oito anos depois, a repetir a história.
No dia seguinte, acordei com os olhos inchados e uma sensação de vazio no peito. O Rui já tinha saído para o trabalho. O Tiago evitava olhar-me nos olhos enquanto tomava o pequeno-almoço.
— Está tudo bem contigo? — perguntei-lhe, tentando soar casual.
Ele encolheu os ombros. — Vocês vão divorciar-se?
A pergunta caiu como um balde de água fria. — Não sei, Tiago. Não sei mesmo.
Fui trabalhar como um autómato. No hospital, as histórias dos outros misturavam-se com a minha: uma senhora idosa que chorava porque o filho nunca a visitava; um jovem acidentado que implorava para ligar à namorada. Todos à procura de amor, de compreensão.
Quando voltei a casa, encontrei o Rui sentado no sofá, com uma cerveja na mão e o olhar perdido na televisão desligada.
— Precisamos de falar — disse ele sem me olhar.
Sentei-me ao seu lado, sentindo a distância entre nós como um muro invisível.
— Isto não está a funcionar — começou ele. — Eu sinto-me sozinho nesta casa. Sinto que já não te conheço.
— Eu também me sinto assim — confessei, surpreendendo-me com a honestidade da minha voz.
O silêncio instalou-se entre nós. Um silêncio pesado, cheio de tudo o que nunca dissemos.
— Lembras-te de quando íamos à praia ao domingo? — perguntei de repente. — De como ríamos por tudo e por nada?
Ele sorriu, um sorriso triste. — Lembro-me. Mas isso foi há muito tempo.
— O que nos aconteceu?
Ele abanou a cabeça. — A vida aconteceu.
Chorei baixinho naquela noite. Não pelas discussões ou pelas palavras duras, mas pelo tempo perdido, pelos sonhos adiados. Lembrei-me de quando era miúda e queria ser escritora, viajar pelo mundo. Agora mal tinha tempo para ler um livro.
Os dias seguintes foram um arrastar de rotinas e silêncios desconfortáveis. O Tiago fechava-se cada vez mais no seu mundo. Eu tentava manter as aparências no trabalho e em casa, mas sentia-me a desmoronar por dentro.
Uma noite, depois de todos se deitarem, sentei-me na varanda com uma manta e um caderno velho nas mãos. Comecei a escrever tudo o que sentia: raiva, tristeza, medo… mas também esperança. Esperança de que ainda pudesse encontrar-me no meio do caos.
No fim-de-semana seguinte, tomei uma decisão: precisava de falar com alguém fora daquele círculo vicioso. Liguei à minha irmã mais nova, Inês.
— Mariana? Está tudo bem? — perguntou ela assim que atendeu.
Desatei a chorar ao telefone. Contei-lhe tudo: as discussões com o Rui, o afastamento do Tiago, o cansaço acumulado.
— Tu não tens de carregar tudo sozinha — disse ela com firmeza. — Porque não vens passar uns dias cá a casa? Pensa em ti pela primeira vez em anos.
A ideia parecia impossível… mas também libertadora.
Na segunda-feira seguinte fiz as malas e fui para casa da Inês em Aveiro. O Rui não tentou impedir-me; apenas me olhou com tristeza e resignação.
Na casa da minha irmã senti-me outra vez eu própria: rimos até às lágrimas das nossas memórias de infância; caminhámos junto à ria; falámos sobre tudo e sobre nada.
Comecei a perceber que tinha deixado de viver para mim há muito tempo. Que me tinha perdido nas exigências dos outros e nas expectativas da sociedade: ser boa mãe, boa esposa, boa profissional… mas nunca apenas Mariana.
Depois de uma semana fora voltei para casa diferente. Sentei-me com o Rui e conversámos como há muito não fazíamos.
— Quero tentar outra vez — disse-lhe. — Mas preciso que me vejas como sou agora, não como eras há dez anos atrás.
Ele assentiu em silêncio. Pela primeira vez em muito tempo senti esperança.
Hoje continuo a fazer pão ao jantar — às vezes queimado, outras vezes perfeito — mas já não peço desculpa por isso. O Tiago voltou a sorrir à mesa; o Rui aprendeu a ouvir sem julgar tanto; eu aprendi a dizer o que sinto sem medo.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas em silêncios como eu vivi? Quantos sonhos ficam por realizar porque temos medo de magoar quem amamos? E vocês… já se sentiram assim alguma vez?