À Sombra da Sogra: Um Drama Num Bairro de Lisboa
— Não ponhas tanto sal na sopa, Mariana! O teu Rui sempre gostou dela mais insossa, já devias saber isso. — A voz da Dona Amélia ecoou pela cozinha, cortando o silêncio da noite como uma faca afiada. Eu estava de costas, a colher ainda suspensa sobre a panela, e senti o rubor subir-me ao rosto. Por que é que tudo o que faço parece estar errado aos olhos dela?
A minha vida mudou há dois anos, quando o Rui perdeu o emprego e tivemos de deixar o nosso T1 em Odivelas. A crise apertou, os preços subiram, e a única solução foi aceitar o convite da mãe dele para ficarmos no apartamento dela, no bairro das Olaias. “É só até as coisas melhorarem”, prometeu-me o Rui, com aquele sorriso cansado que já não via há meses. Mas as coisas não melhoraram. E eu fui ficando.
No início, tentei ver o lado positivo: Dona Amélia era viúva, precisava de companhia, e eu podia ajudar nas tarefas da casa enquanto procurava trabalho. Mas rapidamente percebi que ali não havia espaço para mim. Tudo tinha de ser feito à maneira dela — desde a forma como se dobra uma toalha até ao modo como se arruma o arroz na despensa.
— Mariana, já te disse que os copos ficam virados para baixo! — gritava ela da sala, enquanto eu tentava arrumar a loiça sem fazer barulho.
O Rui? O Rui encolhia os ombros. “Sabes como é a minha mãe… Não vale a pena stressares.” Mas era fácil para ele dizer isso. Ele cresceu ali, habituado ao cheiro do café forte logo pela manhã e ao som da televisão sempre ligada nas novelas da tarde. Eu era a intrusa, a forasteira.
As noites eram as piores. Deitávamo-nos cedo porque Dona Amélia não gostava de barulho depois das dez. No nosso quarto minúsculo, ouvia o Rui ressonar enquanto eu fitava o teto, a pensar em como tinha chegado ali. Tinha sonhos, planos — queria abrir uma pequena loja de costura, talvez até voltar a estudar. Mas tudo parecia tão distante agora.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o lixo mal separado, sentei-me à mesa da cozinha e chorei baixinho. Dona Amélia entrou sem bater.
— O que foi agora? — perguntou, sem um pingo de ternura na voz.
— Nada… Só estou cansada.
Ela suspirou alto.
— Olha, Mariana, eu só quero o melhor para o meu filho. Ele já passou por tanto… Não preciso de mais problemas aqui em casa.
Fiquei calada. Como é que lhe explicava que eu também estava a passar por muito? Que também precisava de um pouco de compreensão?
Os dias arrastavam-se. Arranjei um part-time numa pastelaria ali perto, mas Dona Amélia torceu o nariz.
— Vais deixar o Rui sozinho ao jantar? Ele já trabalha tanto…
— Ele é adulto, mãe — respondeu ele uma vez, mas logo se calou quando ela lhe lançou aquele olhar fulminante.
Comecei a sentir-me invisível. As minhas opiniões não contavam; as minhas necessidades eram secundárias. Até as minhas roupas passaram a ser motivo de crítica.
— Não achas que essas calças são demasiado justas? — comentou ela um dia, enquanto eu me preparava para sair.
O Rui tentava mediar as coisas, mas acabava sempre por ceder à mãe. Eu sentia-me cada vez mais sozinha.
Um domingo à tarde, durante o almoço, Dona Amélia lançou uma bomba:
— Sabes, Mariana, a minha vizinha do 3º esquerdo disse-me que a filha dela está grávida. Já pensaram em dar-me um neto? Ou vais continuar só a trabalhar na pastelaria?
O silêncio caiu pesado sobre a mesa. O Rui olhou para mim e depois para ela.
— Mãe, por favor…
Mas ela não se calou.
— Eu só quero ver esta família crescer antes de morrer! — exclamou, limpando uma lágrima teatral.
Senti um nó na garganta. Não era só a pressão do emprego ou da casa — era também esta expectativa constante de ser perfeita, de corresponder ao que ela queria.
Nessa noite, depois do jantar, sentei-me com o Rui no quarto.
— Não aguento mais — confessei-lhe em voz baixa. — Sinto que estou a desaparecer aqui dentro.
Ele abraçou-me, mas percebi que estava tão perdido quanto eu.
— Mariana… Eu sei que não é fácil. Mas agora não temos para onde ir…
Ficámos assim, em silêncio, cada um com os seus pensamentos.
Os meses passaram e eu fui mudando. Comecei a sair mais cedo de casa para passear antes do trabalho; inscrevi-me num curso noturno de costura sem dizer nada à Dona Amélia. Aos poucos fui recuperando pedaços de mim mesma.
Uma tarde, cheguei a casa e encontrei-a sentada à mesa da cozinha com uma carta na mão.
— O que é isto? — perguntou ela, mostrando-me o envelope do curso.
Respirei fundo.
— É um curso de costura. Quero voltar a estudar.
Ela bufou.
— E quem vai tratar da casa? Quem vai fazer o jantar?
Olhei-a nos olhos pela primeira vez em muito tempo.
— Eu faço o que posso. Mas preciso disto para mim.
Ela ficou calada durante uns segundos eternos e depois levantou-se sem dizer palavra.
Nessa noite não jantámos juntos. O Rui tentou apaziguar as coisas, mas eu sabia que algo tinha mudado dentro de mim. Pela primeira vez em anos, senti-me dona do meu destino — mesmo que fosse só um pequeno passo.
Os conflitos continuaram: discussões sobre dinheiro, sobre horários, sobre tudo e nada. Mas eu já não me deixava abater tão facilmente. Comecei a guardar algum dinheiro do trabalho; sonhava com um futuro diferente.
Um dia, ao regressar do curso, encontrei o Rui à minha espera no portão do prédio.
— Mariana… A minha mãe está pior de saúde. O médico diz que precisa de mais cuidados…
Senti uma mistura de pena e revolta. Mais uma vez os meus planos ficavam em suspenso?
Mas desta vez fui clara:
— Eu ajudo no que puder. Mas também preciso de cuidar de mim. Não posso continuar a viver só para os outros.
Ele olhou-me com tristeza e orgulho ao mesmo tempo.
Os dias seguintes foram duros: idas ao hospital, noites mal dormidas, discussões abafadas pelo cansaço. Mas algo mudou entre nós — começámos finalmente a falar sobre o futuro, sobre sair dali quando fosse possível, sobre construir algo nosso.
Dona Amélia acabou por aceitar alguma ajuda externa; eu continuei com o curso e até comecei a fazer pequenos arranjos para as vizinhas do prédio. Aos poucos fui conquistando respeito — não só dela, mas também meu próprio.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi… mas também tudo o que ganhei em força e coragem. Ainda vivo à sombra da sogra — mas já não sou invisível.
Pergunto-me: quantas mulheres vivem assim todos os dias? Quantas têm medo de reclamar o seu espaço? Será possível encontrar felicidade mesmo quando tudo parece perdido?