“Já não sou tua criada, Dona Amélia!” – Uma história sobre limites, família e solidão

— Não posso, Dona Amélia! — gritei, com a voz embargada, enquanto segurava o telemóvel com força. — Já chega! Eu não sou sua criada!

O silêncio do outro lado da porta era pesado, quase sufocante. Senti o coração a bater descompassado, as mãos trémulas. O cheiro a sopa de couve pairava no corredor do prédio, misturado com o odor adocicado dos medicamentos que Dona Amélia tomava. Era como se o próprio ar estivesse saturado de tudo aquilo que eu já não conseguia suportar.

Nunca pensei que a minha vida fosse dar tantas voltas por causa de uma vizinha. Quando me mudei para este prédio em Benfica, há três anos, Dona Amélia era apenas aquela senhora de cabelo branco, sempre sentada à janela do rés-do-chão, a ver quem passava. No início, achei-a simpática. Cumprimentava-me com um sorriso e perguntava sempre pelo meu dia. Um dia, pediu-me para lhe trazer pão da padaria. No outro, para lhe ir buscar os comprimidos à farmácia. E assim começou.

No princípio, não me importava. Afinal, era só uma idosa sozinha. Os filhos viviam longe — um em Braga, outro em Faro — e raramente apareciam. Eu própria sentia falta da minha mãe, que tinha morrido há pouco tempo. Talvez por isso me tenha deixado envolver tanto. Mas com o tempo, os pedidos de Dona Amélia tornaram-se exigências. Já não era “se não se importar”, era “preciso que me faças isto”.

Lembro-me do primeiro grande conflito em casa. O meu marido, Rui, estava sentado à mesa da cozinha, a olhar para mim com aquele ar cansado.

— Outra vez vais lá abaixo? — perguntou ele, sem levantar os olhos do jornal.

— Ela precisa de ajuda para tomar banho — respondi, já na defensiva.

— E tu precisas de descansar! Tens trabalhado tanto… E depois ainda te metes nessas coisas…

— Rui, ela não tem ninguém!

Ele suspirou fundo.

— Mas tu tens família! Tens uma filha que quase não vê a mãe porque estás sempre a correr para ajudar a Dona Amélia!

As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. A minha filha Inês também começou a reclamar:

— Mãe, porque é que passas mais tempo com a vizinha do que comigo?

Senti-me dilacerada entre o dever e o amor. Entre a compaixão e o cansaço. Comecei a sentir raiva de Dona Amélia — e depois culpa por sentir raiva de uma velha sozinha.

Houve dias em que me apeteceu desaparecer. Chegava do trabalho exausta e encontrava bilhetes enfiados por baixo da porta: “Preciso de leite”, “A televisão não liga”, “Vem cá quando puderes”. E eu ia sempre. Porque tinha medo do que diriam os outros se ela caísse ou ficasse sem comer por minha culpa.

Mas as coisas pioraram quando Dona Amélia começou a exigir mais do que eu podia dar. Uma noite, já depois das dez, ligou-me:

— Filomena, tens de vir cá já! Não consigo respirar!

Corri escadas abaixo em pijama, o coração aos saltos. Quando cheguei lá, estava sentada no sofá, pálida mas calma.

— Afinal o que se passa?

— Senti-me mal… mas agora já passou. Fica aqui comigo um bocadinho.

Sentei-me ao lado dela, mas por dentro fervilhava de irritação. Cheguei a casa quase à meia-noite e encontrei Rui acordado à minha espera.

— Isto não pode continuar assim — disse ele.

Mas continuou. Porque eu deixei.

No Natal passado, Dona Amélia pediu-me para passar com ela porque “ninguém vinha”. Disse-lhe que não podia — era o primeiro Natal só com Rui e Inês desde que a minha mãe morrera. Ela chorou ao telefone:

— Não tens coração…

Passei o resto da noite com um nó na garganta e lágrimas nos olhos enquanto via Inês abrir os presentes.

A gota de água foi há duas semanas. Estava atrasada para uma reunião importante quando Dona Amélia me ligou:

— Preciso que me vás buscar ao centro de saúde! Não consigo apanhar táxi!

Expliquei-lhe que não podia sair do trabalho naquele momento. Ela desligou-me o telefone na cara. Quando cheguei a casa à noite, encontrei-a sentada nas escadas do prédio, à espera.

— És uma ingrata! — gritou ela assim que me viu. — Depois de tudo o que fiz por ti!

Fiquei sem palavras. O meu corpo tremia de raiva e vergonha.

Foi nesse dia que decidi: basta.

Durante dias ensaiei o discurso na cabeça. Como é que se diz a alguém que já não se aguenta mais? Que precisamos de espaço? Que também temos uma vida?

Hoje finalmente ganhei coragem. Bati à porta dela com as mãos suadas.

— Dona Amélia… precisamos de conversar.

Ela olhou para mim com aqueles olhos azuis desbotados.

— Vais deixar-me sozinha? — perguntou num sussurro.

— Não é isso… Mas eu tenho uma família, um trabalho… Não posso ser tudo para si. Precisa de pedir ajuda aos seus filhos ou aos serviços sociais.

Ela virou a cara para a janela.

— Eles não querem saber de mim… Só tu me ajudas…

Senti um aperto no peito.

— Eu ajudo no que posso. Mas não posso ser sua criada…

Ela ficou em silêncio durante muito tempo. Depois disse apenas:

— Vai-te embora então.

Saí dali com lágrimas nos olhos e um peso enorme nos ombros. Senti-me egoísta e cruel — mas também aliviada.

Em casa, Rui abraçou-me sem dizer nada. Inês sorriu-me pela primeira vez em semanas.

Ainda hoje penso em Dona Amélia sozinha naquele apartamento frio. Pergunto-me se fiz bem ou mal. Se há limites para a compaixão ou se somos todos reféns da nossa própria solidão.

Será possível ajudar alguém sem nos perdermos a nós próprios? Onde acaba o dever e começa o direito ao nosso próprio espaço? Gostava de saber o que vocês fariam no meu lugar.