Dois anos depois do casamento com um homem divorciado: Será que o nosso amor sobrevive quando a filha dele entra nas nossas vidas?
— Vais mesmo ficar calada, Sofia? — A voz do Paulo ecoou pelo corredor estreito do nosso apartamento em Benfica. Eu estava parada à porta, as mãos a tremerem tanto que quase deixei cair as chaves. Lá dentro, o cheiro a café requentado misturava-se com o perfume doce da Mafalda, que eu só conhecia das visitas quinzenais e das fotos no frigorífico.
Dois anos. Dois anos de casamento com um homem divorciado, dois anos a tentar construir uma vida a dois, sempre com a sombra da ex-mulher e da filha a pairar sobre nós. Agora, a Mafalda vinha viver connosco. A mãe dela tinha aceitado um emprego no Porto e não podia levá-la. O Paulo estava radiante — finalmente ia poder ser pai a tempo inteiro. Eu… eu não sabia o que sentia.
— Sofia, ela chega daqui a meia hora. Por favor, tenta… tenta ser simpática. — O Paulo olhou para mim com aqueles olhos castanhos cheios de esperança e medo.
— Eu vou tentar — murmurei, mas a minha voz soou mais fria do que queria.
A campainha tocou. O Paulo correu à porta e abriu-a com um sorriso largo. A Mafalda entrou, mochila às costas, auriculares nos ouvidos, olhar desconfiado. Tinha 14 anos, mas parecia mais velha — ou talvez fosse só o peso do mundo nos ombros dela.
— Olá, Mafalda! — forcei um sorriso.
Ela tirou um auricular. — Olá.
O Paulo tentou quebrar o gelo. — Queres ver o teu quarto? A Sofia ajudou a arrumá-lo.
Mafalda encolheu os ombros e seguiu-o pelo corredor. Fiquei sozinha na sala, a olhar para as fotografias na estante: nós dois em Sintra, no nosso casamento civil na Conservatória do Registo Civil de Lisboa, um postal de Natal da mãe do Paulo. Nenhuma foto da Mafalda. Senti uma pontada de culpa.
O jantar foi um desastre anunciado. O Paulo tentava animar a conversa:
— Então, Mafalda, como foi o último dia na escola?
— Normal — respondeu ela, sem levantar os olhos do prato.
— A Sofia fez bacalhau à Brás, como tu gostas.
Ela encolheu os ombros outra vez. — A mãe faz melhor.
O silêncio caiu como uma pedra entre nós. O Paulo olhou-me de lado, pedindo paciência. Eu mastiguei em silêncio, sentindo-me uma intrusa na minha própria casa.
Nas semanas seguintes, tudo piorou. A Mafalda fechava-se no quarto, saía apenas para comer ou ir à casa de banho. O Paulo tentava compensar o tempo perdido: levava-a ao cinema, comprava-lhe livros e roupa nova. Eu sentia-me cada vez mais invisível.
Uma noite, ouvi-os a discutir no corredor.
— Não quero cá estar! Quero ir para o Porto com a mãe! — gritava a Mafalda.
— Não podes! A tua mãe está a começar um novo trabalho! Aqui tens tudo: escola, amigos…
— Não tenho nada! Nem sequer tenho espaço! Este quarto é minúsculo! E ela… — ouvi o meu nome sussurrado com desprezo.
Fiquei parada atrás da porta, o coração aos pulos. Senti-me uma intrusa outra vez.
No dia seguinte, tentei falar com ela.
— Mafalda… posso entrar?
Ela não respondeu. Entrei na mesma. Estava sentada na cama, a olhar para o telemóvel.
— Sei que isto não é fácil para ti…
Ela levantou os olhos, frios como gelo. — Não sabes nada sobre mim.
Sentei-me na ponta da cama. — Tens razão. Mas gostava de saber. Se quiseres falar…
Ela virou-me as costas. Saí do quarto com lágrimas nos olhos.
O Paulo tentou animar-me:
— Ela vai habituar-se. Precisa de tempo.
Mas eu já não tinha tempo nem paciência. Comecei a evitar estar em casa quando sabia que ela lá estava. Ficava horas no café da esquina a ler ou fingir que lia. Uma noite cheguei tarde e encontrei o Paulo sozinho na sala.
— Onde estiveste? — perguntou ele.
— Fui dar uma volta.
— Sofia… precisamos de falar.
Sentei-me no sofá, exausta.
— Isto não está a funcionar — disse ele baixinho. — Estamos todos infelizes.
— Eu tentei…
— Eu sei que tentaste. Mas talvez… talvez não seja suficiente.
As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a pensar em sair de casa, dar-lhes espaço para serem pai e filha sem mim no meio. Mas depois lembrava-me dos momentos bons: as noites em que ríamos juntos, os passeios ao domingo no Jardim da Estrela, os sonhos que tínhamos para o futuro.
Uma tarde, encontrei a Mafalda na cozinha a chorar baixinho.
— O que se passa? — perguntei suavemente.
Ela hesitou antes de responder:
— Sinto falta da minha mãe… sinto falta da minha vida antiga…
Sentei-me ao lado dela e toquei-lhe no ombro.
— Eu também sinto falta da minha vida antiga… mas talvez possamos construir uma nova juntas?
Ela olhou para mim pela primeira vez sem raiva nos olhos. Ficámos ali em silêncio durante uns minutos.
A partir desse dia, as coisas começaram a mudar devagarinho. Começámos a cozinhar juntas ao fim-de-semana — ela ensinou-me a fazer panquecas como as da mãe dela; eu ensinei-lhe a fazer arroz doce como a minha avó fazia em Santarém. O Paulo sorria mais vezes; até começámos a tirar fotos novas para pôr na estante.
Mas nem tudo ficou perfeito. Havia dias maus: discussões por causa das tarefas domésticas, ciúmes mal disfarçados quando o Paulo dava mais atenção à filha do que a mim, silêncios desconfortáveis à mesa do jantar. Às vezes perguntava-me se valia mesmo a pena lutar por esta família improvisada.
Uma noite, depois de uma discussão feia sobre quem ia limpar a casa de banho, sentei-me sozinha na varanda e chorei baixinho para não me ouvirem. O Paulo veio ter comigo e abraçou-me sem dizer nada.
— Achas que algum dia vamos ser mesmo uma família? — perguntei-lhe entre soluços.
Ele beijou-me na testa e respondeu:
— Já somos uma família… só precisamos de tempo para aprender como ser.
Agora escrevo estas palavras sentada à mesa da cozinha enquanto a Mafalda faz os trabalhos de casa ao meu lado e o Paulo prepara chá para todos nós. Ainda há dias difíceis; ainda há momentos em que me sinto perdida nesta casa cheia de memórias que não são minhas. Mas também há risos partilhados, abraços inesperados e pequenas vitórias diárias.
Será que o amor resiste mesmo às tempestades? Ou será que aprendemos apenas a viver melhor com as nossas imperfeições? Gostava de saber se alguém já passou por algo assim…