O meu marido, a sua carteira e a minha prisão: Uma história de casamento sem liberdade

— Onde é que foste com o dinheiro do pão, Inês? — perguntou o Rui, com aquele tom frio que me fazia gelar por dentro. O relógio da cozinha marcava 19h12, e eu ainda sentia o cheiro do frango assado que preparara para o jantar. Os miúdos, a Mariana e o Tiago, estavam sentados à mesa, olhos baixos, a fingir que não ouviam.

A minha mão tremia enquanto pousava o saco das compras. — Fui só ao supermercado, Rui. Trouxe tudo o que pediste. — Tentei sorrir, mas sabia que ele não ia acreditar. Ele nunca acreditava.

— Não me mintas! — gritou, batendo com a mão na mesa. O Tiago estremeceu. — O dinheiro não chega para tudo! Se não sabes gerir, mais vale deixares de sair de casa!

A humilhação era diária. O Rui controlava tudo: o dinheiro, as minhas saídas, até as chamadas no telemóvel. Se eu demorasse mais cinco minutos no café com a vizinha Rosa, recebia logo uma chamada: “Onde estás? Com quem falas?”

No início, pensei que era amor. Que ele só queria proteger-me. Mas com o tempo percebi: era posse. Era medo de me perder ou talvez medo de si próprio. E eu? Eu fui desaparecendo aos poucos.

Lembro-me da primeira vez que me senti verdadeiramente sozinha. Foi numa noite de inverno, os miúdos já dormiam e eu estava sentada no sofá, a olhar para a televisão desligada. O Rui estava no quarto, a ver futebol no telemóvel. Senti um vazio tão grande que quase me engoli a mim mesma.

A minha mãe sempre dizia: “Inês, casamento é para a vida.” Mas nunca me falou sobre o preço de perdermos quem somos só para manter uma família unida. Quando tentei desabafar com ela, respondeu-me: “Aguenta, filha. Pensa nos teus filhos.”

Mas como se aguenta quando já não se sente nada? Quando até o espelho nos devolve uma estranha?

As discussões tornaram-se rotina. Uma vez, porque comprei iogurtes de marca branca em vez dos habituais; outra porque deixei o Tiago ir ao futebol sem avisar o pai. Tudo era motivo para discussão.

— És uma inútil! — atirou-me ele numa dessas noites. — Se não fosses tu, isto corria melhor!

Chorei baixinho na casa de banho, para ninguém ouvir. A Mariana bateu à porta:

— Mãe, estás bem?

— Estou, filha… Só preciso de um bocadinho sozinha.

Ela tinha apenas nove anos mas já percebia demasiado.

O Rui nunca me bateu. Mas as palavras dele eram facas afiadas. Cortavam devagarinho, todos os dias.

Comecei a sentir vergonha de mim própria. Evitava sair de casa para não ter de explicar aos vizinhos porque andava sempre tão triste. No supermercado, olhava para as outras mulheres e perguntava-me se também viviam assim.

Um dia, a Rosa apanhou-me à porta do prédio:

— Inês, estás tão magra… Está tudo bem?

Quis dizer-lhe tudo. Que me sentia presa, que já não sabia quem era. Mas sorri e disse:

— Está tudo bem, só ando cansada.

Ela olhou-me nos olhos e apertou-me a mão:

— Se precisares de falar… sabes onde moro.

Foi nesse dia que comecei a pensar em sair. Mas como? Não tinha dinheiro próprio — o Rui guardava tudo na carteira dele. O meu ordenado do part-time ia diretamente para a conta conjunta e ele controlava cada cêntimo.

À noite, enquanto arrumava a cozinha, ouvi o Rui ao telefone com a mãe dele:

— A Inês não faz nada de jeito… Só sabe gastar dinheiro!

Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Não era justo. Eu fazia tudo: trabalhava, cuidava dos miúdos, da casa… E mesmo assim nunca era suficiente.

Comecei a guardar moedas no fundo do armário das limpezas. Pouco a pouco, juntei vinte euros. Era pouco, mas era meu.

Numa sexta-feira à tarde, depois de deixar os miúdos na escola, fui ao centro de emprego perguntar por formações gratuitas. A senhora do balcão olhou-me com pena:

— Tem mesmo vontade de mudar?

Assenti com força.

— Então inscreva-se neste curso de apoio domiciliário. Pode ser um começo.

Voltei para casa com um folheto escondido na mala. O coração batia-me tão forte que pensei que o Rui ia perceber logo.

Nessa noite, tentei falar com ele:

— Rui… Estive a pensar em tirar um curso. Podia ajudar-nos com mais dinheiro em casa.

Ele riu-se:

— Para quê? Não serves para nada disso! Fica mas é quieta e faz o jantar.

Senti-me esmagada. Mas não desisti.

Durante semanas fui ao curso às escondidas, dizendo que ia às compras ou buscar os miúdos mais cedo à escola. Aprendi sobre primeiros socorros, higiene pessoal dos idosos… Senti orgulho em mim pela primeira vez em anos.

Um dia, a formadora chamou-me à parte:

— Inês, tem muito jeito para isto. Já pensou em trabalhar numa instituição?

Sorri-lhe com lágrimas nos olhos:

— Gostava tanto…

Quando terminei o curso, consegui um estágio numa casa de repouso em Almada. O meu primeiro ordenado foi pequeno mas era só meu.

O Rui descobriu tudo quando encontrou o contrato na minha mala.

— Traíste-me! — gritou ele. — Andaste a mentir-me este tempo todo!

Os miúdos estavam na sala e ouviram tudo.

— Pai… deixa a mãe em paz! — gritou a Mariana pela primeira vez.

O Rui ficou vermelho de raiva mas não disse mais nada naquela noite.

No dia seguinte fez as malas e saiu de casa durante dois dias. Eu tremia por dentro mas também senti alívio.

Quando voltou, tentou pedir desculpa:

— Eu só queria proteger-te…

Mas eu já não era a mesma Inês.

Procurei ajuda numa associação de apoio à mulher e comecei terapia. Aos poucos recuperei a minha voz e ensinei os meus filhos que ninguém tem o direito de nos prender.

Hoje vivo sozinha com eles num pequeno apartamento em Almada. Não é fácil — há dias em que choro sozinha na cozinha ou fico acordada a pensar nas contas por pagar. Mas sou livre.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem ainda presas sem correntes visíveis? Quantas Inês existem por aí à espera de descobrir que têm força para mudar?