Quando o Destino Rasga Sonhos: A História de Marta e Daniel, Um Amor à Prova do Impossível
— Marta, não podes continuar assim! — gritou a minha mãe do outro lado da porta, a voz embargada pela preocupação e pela raiva. Eu estava sentada no chão frio da casa de banho, as costas encostadas à parede, as lágrimas a escorrerem pelo rosto. O telefone ainda vibrava na minha mão, como se quisesse lembrar-me do que tinha acabado de acontecer.
“Daniel sofreu um acidente. Está no hospital de Santa Maria. Venha o mais depressa possível.”
Aquelas palavras ecoavam na minha cabeça como um trovão interminável. O Daniel, o meu Daniel, com quem partilhei sonhos, discussões, risos e silêncios, estava entre a vida e a morte. E eu ali, paralisada pelo medo e pela culpa.
Levantei-me com esforço, lavei o rosto e abri a porta. A minha mãe olhou para mim com olhos vermelhos, mas não disse mais nada. No carro, o silêncio era pesado. O rádio tocava uma música qualquer da Ana Moura, mas eu só ouvia o meu coração aos pulos.
Quando cheguei ao hospital, vi o pai do Daniel encostado a uma parede, a fumar compulsivamente. A mãe dele chorava baixinho ao lado da irmã mais nova. Senti-me uma intrusa naquele sofrimento familiar, mas sabia que também era minha aquela dor.
— Marta! — chamou a irmã dele, a Joana. — Ele está nos cuidados intensivos… disseram que foi grave.
Abracei-a com força. O cheiro a desinfetante misturava-se com o perfume barato dela e com o medo que pairava no ar.
Horas passaram. O médico apareceu finalmente, com um olhar cansado:
— Ele está estável, mas vai ser uma recuperação longa. Precisa de apoio… e de muita força.
Suspirei de alívio e desatei a chorar outra vez. Mas mal sabia eu que aquele acidente não era só um acidente. Era o início do fim daquilo que eu pensava ser a minha vida perfeita.
Nos dias seguintes, revezei-me entre o hospital e o trabalho no café da Dona Lurdes. Os clientes perguntavam por mim, mas eu mal conseguia sorrir. O Daniel acordou finalmente, mas não era o mesmo. Tinha perdido parte da memória recente e não se lembrava do nosso último ano juntos.
— Marta… tu és mesmo minha namorada? — perguntou ele, com um sorriso tímido e confuso.
O meu coração partiu-se em mil pedaços. Como explicar-lhe tudo? As viagens que planeámos, as discussões sobre filhos, os jantares em casa dos meus pais? Como reconstruir um amor quando metade dele desapareceu?
A família dele começou a afastar-se de mim. A mãe do Daniel dizia que eu era um peso, que ele precisava de paz e não de confusões. O pai dele evitava olhar-me nos olhos. Só a Joana me apoiava:
— Não desistas dele, Marta. Ele vai lembrar-se…
Mas os dias passavam e nada mudava. O Daniel olhava para mim como se fosse uma estranha simpática. Comecei a duvidar de tudo: será que ele alguma vez me amou? Ou será que fui eu que inventei esse amor?
Uma noite, depois de mais uma discussão com a minha mãe — que achava que eu devia seguir em frente — fui até à praia da Costa da Caparica sozinha. Sentei-me na areia fria e chorei até não ter mais lágrimas.
Foi aí que recebi uma mensagem inesperada: “Precisamos de falar.” Era do Daniel.
O coração disparou. Corri até ao hospital, sem saber o que esperar. Quando entrei no quarto, ele estava sentado na cama, com um olhar sério.
— Marta… disseram-me que tu estiveste comigo no acidente. Que foste tu que ligaste para a ambulância…
Assenti em silêncio.
— E disseram-me também… — fez uma pausa longa — …que nós tínhamos discutido antes do acidente. Que eu saí zangado contigo.
Senti um nó na garganta. Era verdade. Tínhamos discutido por causa de uma mensagem suspeita no telemóvel dele. Uma tal de Rita tinha-lhe escrito coisas carinhosas demais para serem só amigas.
— Daniel… eu…
— Fui eu que causei isto tudo? — perguntou ele, com lágrimas nos olhos.
Aproximei-me dele e segurei-lhe a mão.
— Não interessa quem causou o quê… O importante é que estás aqui agora.
Ele olhou para mim longamente.
— Achas que podemos começar do zero?
O meu coração queria dizer sim, mas a cabeça gritava não. Havia feridas antigas, mágoas por sarar. Mas naquele momento decidi tentar.
Os meses seguintes foram uma montanha-russa. O Daniel reaprendeu a amar-me aos poucos — ou talvez tenha aprendido a amar-me de novo, de outra forma. Fomos juntos ao parque onde demos o primeiro beijo; voltámos ao café onde costumávamos rir das piadas do senhor António; tentámos recuperar os rituais perdidos.
Mas havia sempre uma sombra entre nós: a Rita continuava a mandar mensagens ao Daniel. Ele dizia que não se lembrava dela, mas eu via o brilho estranho nos olhos dele quando lia aquelas mensagens escondidas.
Uma noite, decidi confrontá-lo:
— Daniel, preciso que sejas honesto comigo. Quem é afinal a Rita?
Ele hesitou.
— Não sei… Sinto que devia saber, mas não me lembro…
Peguei-lhe no telemóvel e li as mensagens: “Sinto tanto a tua falta”, “Quando voltas para mim?”
O chão fugiu-me dos pés.
— Estavas a trair-me antes do acidente? — perguntei num sussurro.
Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que nunca mais fosse responder.
— Não sei… Talvez sim…
Saí dali sem olhar para trás. Passei dias sem comer nem dormir direito. A minha mãe tentava animar-me:
— Filha, há coisas na vida que não têm volta atrás. Tens de te perdoar e seguir em frente.
Mas como perdoar quando nem sequer sei toda a verdade? Como reconstruir-me quando tudo aquilo em que acreditava era uma mentira?
O Daniel tentou falar comigo várias vezes, mas eu evitava-o. Só voltei ao hospital quando soube que ele tinha tido uma recaída e estava pior.
Quando entrei no quarto, ele estava pálido e frágil como nunca o tinha visto.
— Marta… desculpa por tudo — murmurou ele — Se pudesse voltar atrás…
Sentei-me ao lado dele e chorei baixinho.
— Eu também gostava de voltar atrás… Mas talvez seja tempo de cada um seguir o seu caminho.
Ele sorriu tristemente e apertou-me a mão pela última vez.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci no meio da dor. Aprendi que o amor pode sobreviver à tragédia, mas nem sempre sobrevive à verdade. E pergunto-me: será possível perdoar o destino quando ele nos rouba tudo? Ou será que temos de aprender a viver com as cicatrizes?