Quando a Minha Irmã Teresa Mais Precisou, Ficou Sozinha: Uma História de Família, Dor e Silêncio
— Não me deixes sozinha, por favor… — sussurrou a Teresa, com a voz rouca, enquanto eu lhe segurava a mão fria. O cheiro do hospital misturava-se com o perfume suave que ela sempre usava, mesmo agora, tão fraca. Olhei para o relógio: eram quase oito da noite. Os corredores estavam vazios, e só se ouvia o bip das máquinas e o arrastar dos meus pensamentos.
Nunca imaginei que a minha vida se resumisse a isto: sentada ao lado da minha irmã mais velha, a ver-lhe a vida escapar entre os dedos. Teresa sempre foi o pilar da família. Depois do divórcio com o António — um homem que nunca soube valorizar o que tinha — ela ficou sozinha com três filhos pequenos: o João, a Mariana e o Pedro. Lembro-me de como ela trabalhava horas extra no supermercado, de como fazia malabarismos para pagar as contas e ainda assim nunca faltava um sorriso ou um abraço para os filhos.
— Eles vêm amanhã? — perguntou-me ela, com esperança nos olhos.
Engoli em seco. Não tinha coragem de lhe dizer que já fazia semanas que nenhum deles aparecia. Mariana mandava mensagens rápidas: “Desculpa mãe, estou cheia de trabalho.” João dizia sempre que estava fora do país em reuniões. Pedro… Pedro nem respondia às chamadas.
— Devem estar ocupados, Teresa. Mas sabem que te amam — menti, sentindo-me pequena.
Ela sorriu, mas os olhos dela diziam tudo. Aquele olhar vazio, de quem percebeu que foi esquecida por quem mais amava. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como era possível? Como podiam eles virar costas à mãe que lhes deu tudo?
Lembro-me de quando éramos pequenas. Teresa era a minha heroína. Protegia-me dos gritos do pai quando ele chegava bêbado, fazia-me panquecas ao domingo e ensinou-me a andar de bicicleta no parque da cidade. Quando casou com o António, pensei que finalmente ia ser feliz. Mas ele traiu-a, humilhou-a e deixou-a sozinha com três crianças e uma casa hipotecada.
Durante anos, vi Teresa sacrificar-se. Nunca comprava nada para ela própria. O dinheiro era para os livros da escola dos filhos, para as consultas do Pedro — que nasceu com problemas respiratórios — ou para pagar as explicações da Mariana. Eu própria ajudei como pude, mas tinha o meu trabalho e uma filha pequena para criar.
Quando Teresa adoeceu — um cancro agressivo, diagnosticado tarde demais — pensei que finalmente os filhos iam retribuir todo o amor que receberam. Mas não foi isso que aconteceu.
— Lembras-te do Natal em que fizemos rabanadas até às três da manhã? — perguntou ela, tentando sorrir.
— Lembro sim… E tu queimaste-te toda com o óleo! — tentei animá-la.
Ela riu-se baixinho, mas logo tossiu, cansada.
— Eles eram tão pequenos… — murmurou. — Será que fui má mãe?
O nó na minha garganta apertou ainda mais.
— Foste a melhor mãe do mundo, Teresa. Eles é que se esqueceram disso.
No dia seguinte, decidi ligar à Mariana.
— Mariana, a tua mãe está pior. Ela pergunta por vocês todos os dias…
— Eu sei, tia Ana… Mas tenho tanto trabalho… O João também está em Madrid e o Pedro está com uns problemas dele…
— Mariana! A tua mãe pode não aguentar muito mais! Achas mesmo que o trabalho é mais importante?
Do outro lado ouvi um suspiro.
— Eu não sei lidar com isto… Não quero ver a mãe assim…
Desliguei sem dizer mais nada. Senti uma mistura de pena e raiva. Como é possível fugir assim? Não será pior viver com o remorso de não ter estado presente?
Os dias passaram lentos. Teresa foi ficando cada vez mais fraca. Às vezes delirava, chamava pelos filhos em sonhos. Outras vezes ficava horas em silêncio, olhando pela janela do quarto do hospital para o céu cinzento de Lisboa.
Uma tarde, apareceu o António. Entrou no quarto sem bater à porta, com aquele ar arrogante de sempre.
— Vim ver como está a Teresa — disse-me secamente.
Olhei-o nos olhos.
— Agora? Depois de tudo?
Ele encolheu os ombros.
— Os miúdos pediram-me para vir ver como ela está…
Senti vontade de gritar. Mas contive-me por respeito à minha irmã.
Teresa abriu os olhos e sorriu-lhe tristemente.
— Olá António…
Ele sentou-se na cadeira ao lado da cama e ficou ali calado. Não houve pedidos de desculpa nem palavras bonitas. Só silêncio e mágoa acumulada durante anos.
Naquela noite, fiquei sozinha outra vez com Teresa. Ela agarrou-me a mão com força inesperada.
— Ana… Se eu partir antes deles virem… Diz-lhes que os amo… Mesmo assim…
Chorei baixinho ao lado dela. Senti-me impotente perante tanta injustiça.
No funeral, estavam poucos amigos e alguns vizinhos antigos. Os filhos chegaram atrasados, vestidos de preto mas com os olhos secos. Mariana chorou um pouco durante a missa, mas logo se afastou para atender uma chamada no telemóvel. João ficou encostado à parede do cemitério, sem olhar ninguém nos olhos. Pedro parecia perdido no meio da multidão.
Depois do enterro, reunimo-nos todos na casa da Teresa. A casa onde ela criou os filhos sozinha estava estranhamente silenciosa. As fotografias nas paredes mostravam sorrisos antigos: férias no Algarve, aniversários cheios de balões coloridos, tardes no jardim da avó em Santarém.
— O que vai acontecer à casa? — perguntou Mariana, olhando para mim como se eu fosse uma estranha.
— Isso agora é convosco — respondi friamente. — A vossa mãe deixou tudo para vocês.
Eles começaram logo a discutir sobre heranças e partilhas. Senti-me enojada. Saí para o quintal e sentei-me no banco onde tantas vezes me sentei com Teresa nas tardes quentes de verão.
O silêncio era ensurdecedor. Olhei para o céu e perguntei-me onde tinha falhado aquela família. Como é possível alguém dar tudo e acabar sozinho? Será culpa dos tempos modernos? Da correria do dia-a-dia? Ou será simplesmente medo de encarar a dor?
Hoje passo muitas vezes pela casa da Teresa. O jardim está abandonado, as janelas fechadas. Os filhos raramente lá vão. Às vezes penso em bater-lhes à porta e perguntar-lhes se dormem bem à noite, se não sentem falta do abraço da mãe ou do cheiro das rabanadas no Natal.
Mas depois lembro-me das últimas palavras da minha irmã: “Diz-lhes que os amo… Mesmo assim…”
E fico ali parada na rua, a olhar para aquela casa vazia e a pensar: quantas Teresas existem por aí? Quantas mães dão tudo e acabam esquecidas? Será que algum dia vamos aprender a valorizar quem realmente importa antes que seja tarde demais?
E vocês? Já disseram hoje à vossa mãe o quanto ela significa para vocês?