Entre Duas Mães: O Peso das Expectativas

— Filha, por favor, pensa bem antes de tomares uma decisão destas — a voz da minha mãe tremia, os olhos marejados de lágrimas. Ao lado dela, a minha sogra, Dona Teresa, apertava as mãos com força, como se quisesse segurar o mundo inteiro entre os dedos.

Eu estava encostada à ombreira da porta, sentindo o frio do azulejo debaixo dos pés descalços. O cheiro do café que Dona Teresa trouxera numa garrafa térmica misturava-se com o perfume antigo da minha mãe. Era um cheiro de infância, de domingos em família, mas agora parecia-me sufocante.

— Ana, tu sabes que o Miguel é um bom homem — insistiu Dona Teresa, a voz rouca de tanto chorar nos últimos dias. — Todos os casamentos têm crises. Não podes deitar tudo fora assim.

Olhei para elas, para as duas mulheres que mais me amaram na vida. E senti-me tão sozinha como nunca. O Miguel estava no quarto, fingindo dormir ou talvez apenas fugindo do confronto. Eu já não sabia.

— Mãe, Dona Teresa… eu já tentei. Tentei tanto — a minha voz saiu num sussurro, quase um pedido de desculpa. — Mas eu não aguento mais.

A minha mãe aproximou-se e agarrou-me as mãos. As dela estavam frias e trémulas.

— Ana, filha, tu sabes como foi difícil para mim criar-te sozinha depois que o teu pai se foi embora. Eu sempre quis que tivesses uma família unida, que não passasses pelo mesmo sofrimento…

Senti uma pontada no peito. Era sempre isto: o medo de repetir a história dela, de ser mais uma mulher sozinha numa vila pequena do interior de Portugal, onde todos sabem tudo e ninguém esquece nada.

Dona Teresa limpou as lágrimas com um lenço bordado.

— O Miguel está perdido sem ti. Ele não fala, não come… Ele ama-te, Ana. Dá-lhe mais uma oportunidade.

Fechei os olhos por um instante. Lembrei-me do início: dos passeios à beira-rio em Coimbra, das cartas apaixonadas que ele me escrevia quando estava a trabalhar em Lisboa. Lembrei-me do dia em que me pediu em casamento na praia da Figueira da Foz, com um anel simples mas cheio de significado.

Mas depois vieram os silêncios. Os jantares frios. As discussões por coisas pequenas: a loiça por lavar, o dinheiro curto no fim do mês, a pressão para termos filhos — pressão essa que vinha das duas mulheres agora à minha frente.

— Não é só uma crise — murmurei. — Eu já não sei quem sou ao lado dele.

A minha mãe soltou um soluço baixo.

— Não digas isso…

— Eu perdi-me — continuei, sentindo as lágrimas a escorrerem pelo rosto. — Eu acordo todos os dias e sinto um vazio tão grande… Não é só culpa dele. Eu também mudei. Mas não posso continuar assim só para vos agradar.

Dona Teresa olhou para mim com uma tristeza profunda.

— E se tentassem terapia? O padre António pode ajudar-vos…

Quase sorri com amargura. Em Portugal, tudo se resolve com o padre ou com a família metida ao barulho. Mas eu já tinha tentado falar com o Miguel sobre terapia e ele riu-se na minha cara.

— Ele não quer ajuda — disse baixinho. — Ele acha que está tudo bem assim.

O silêncio caiu pesado entre nós. Lá fora, ouviam-se os sinos da igreja a marcar as nove horas. O tempo parecia suspenso naquela cozinha pequena e abafada.

A minha mãe largou-me as mãos e sentou-se à mesa, exausta.

— E o que vais fazer? Vais voltar para casa? Vais deixar tudo?

Senti o peso da pergunta como um murro no estômago. Voltar para casa da minha mãe seria admitir o fracasso. Seria ouvir as vizinhas a cochichar na mercearia, seria enfrentar os olhares de pena dos colegas da escola onde dou aulas de Português.

Mas ficar… Ficar era morrer aos poucos.

— Eu preciso de tempo — respondi finalmente. — Preciso de pensar em mim pela primeira vez.

Dona Teresa levantou-se abruptamente.

— Pensar em ti? E nós? E o Miguel? E a família? — A voz dela subiu de tom, carregada de mágoa e raiva contida. — Achas que a felicidade é só tua responsabilidade?

A minha mãe tentou acalmá-la:

— Teresa, por favor…

Mas Dona Teresa não se calou:

— Eu perdi o meu marido cedo demais! Criei o Miguel sozinha! Dei-lhe tudo! E agora tu vais embora e deixas-me sem nada?

As palavras dela cortaram-me como facas afiadas. Senti-me egoísta, ingrata, má filha e má nora ao mesmo tempo.

— Eu não quero magoar ninguém… — tentei justificar-me.

A minha mãe levantou-se também e abraçou-me com força.

— Às vezes temos de magoar quem amamos para nos salvarmos a nós próprias, filha…

Chorei no ombro dela como quando era criança e tinha medo do escuro. Dona Teresa ficou parada à porta, olhando-nos como se estivesse a perder tudo o que lhe restava na vida.

Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na sala escura, ouvindo o Miguel ressonar no quarto ao lado. Pensei em tudo: nos sonhos que tive quando era nova, na mulher que queria ser e na mulher que me tornei. Pensei nos meus alunos adolescentes, tão cheios de esperança e medo ao mesmo tempo. Pensei nas mães deles, nas mães de todas nós, sempre a carregar o peso do mundo às costas.

De manhã cedo, antes do sol nascer, escrevi uma carta ao Miguel:

“Miguel,

Amo-te por tudo o que fomos e pelo que tentámos ser juntos. Mas perdi-me neste caminho e preciso reencontrar-me antes que seja tarde demais para mim. Não é culpa tua nem minha — é apenas a vida a acontecer-nos.

Espero que um dia possamos perdoar-nos um ao outro.

Ana”

Deixei a carta na mesa da cozinha e saí para a rua ainda húmida do orvalho da madrugada. Caminhei até ao largo da igreja e sentei-me num banco de pedra fria. Olhei para as casas baixas da vila, para as luzes que começavam a acender-se devagarinho.

Pensei nas palavras da minha mãe: “Às vezes temos de magoar quem amamos para nos salvarmos a nós próprias”.

Será egoísmo escolher-me a mim mesma? Ou será finalmente coragem?

E vocês? Já sentiram este peso entre o dever e o desejo de serem felizes?