O Peso da Herança: Entre o Luto e a Luta pelo Meu Filho
— Catarina, não podes ser tão ingénua! — gritou a minha cunhada, Teresa, com os olhos faiscando de raiva. — Achas mesmo que tudo isto te pertence? Que o António não pensou em mais ninguém além de ti?
As palavras dela cortaram-me como uma lâmina. Eu estava sentada à mesa da sala, as mãos trémulas a segurar a chávena de café que já não sentia quente. O cheiro do café misturava-se com o perfume doce das flores que ainda restavam do funeral do António. O meu coração batia descompassado, como se quisesse saltar do peito e fugir dali.
— Teresa, por favor… — tentei sussurrar, mas a voz saiu-me fraca, quase inaudível. — Não é altura para isto. O António acabou de partir…
Ela bateu com a mão na mesa, fazendo saltar algumas gotas de café.
— Não me venhas com sentimentalismos! O testamento é claro: metade da casa é do Tomás, mas tu não és dona de tudo! E eu tenho direito à minha parte!
Olhei para o meu filho, Tomás, sentado no sofá com o olhar perdido no vazio. Tinha apenas oito anos e já carregava nos ombros o peso de uma tragédia que nem eu conseguia suportar. Desde o dia em que o António morreu naquele maldito acidente na A1, tudo se desmoronou. A casa tornou-se fria, os risos desapareceram e as paredes pareciam encolher-se à medida que as discussões aumentavam.
A família do António nunca gostou verdadeiramente de mim. Sempre fui “a rapariga da aldeia”, a que veio de fora para roubar o coração do filho mais velho. Quando nos casámos, senti que tinha conquistado o mundo. Mas agora… agora sentia-me sozinha, encurralada entre advogados, papéis e olhares acusadores.
Naquela noite, depois de Teresa sair batendo a porta com força, sentei-me ao lado do Tomás. Ele encostou-se a mim em silêncio.
— Mãe… — murmurou ele, com a voz embargada — o pai vai voltar?
O nó na garganta apertou ainda mais. Acariciei-lhe o cabelo castanho-claro, tão parecido com o do António.
— Não, meu amor… Mas ele está sempre connosco, aqui — disse-lhe, pousando a mão sobre o peito dele.
As noites tornaram-se longas e solitárias. Ouvia os sussurros dos vizinhos quando ia ao mercado: “Coitada da Catarina…”, “Dizem que a família do António vai tirar-lhe tudo…”. Sentia os olhares de pena e os cochichos atrás das costas. Mas o pior era mesmo dentro de casa.
A minha sogra, Dona Amélia, começou a aparecer todos os dias. Trazia bolos e rezas, mas também perguntas venenosas.
— Catarina, já pensaste em voltar para a tua terra? Talvez fosse melhor para ti… e para o Tomás. Aqui tens tantas más recordações…
Eu sorria amarelo e agradecia o bolo de laranja, mas por dentro sentia-me a afundar num pântano de mágoa e raiva. Não ia desistir da casa onde construímos a nossa vida. Não ia deixar que arrancassem ao Tomás as memórias do pai.
Os advogados começaram a enviar cartas. Teresa queria vender tudo: a casa onde vivíamos, o terreno onde o António plantava as suas oliveiras com tanto orgulho, até o velho Renault 4L que ele restaurou peça por peça nas tardes de domingo.
Uma noite, depois de pôr o Tomás na cama, sentei-me sozinha na cozinha. O silêncio era tão pesado que quase me sufocava. Peguei numa garrafa de vinho tinto — a preferida do António — e servi-me um copo. As lágrimas começaram a cair sem aviso.
— Porquê, António? Porquê me deixaste sozinha nisto? — sussurrei para o vazio.
No dia seguinte, fui chamada ao escritório do advogado da família. Sentei-me diante dele — um homem magro, de óculos grossos e olhar frio.
— Dona Catarina, compreendo que esteja abalada… mas tem de perceber que legalmente não pode impedir a venda dos bens se os outros herdeiros quiserem avançar.
Senti um frio na espinha. E se perdesse tudo? Onde iria viver com o Tomás? Como iria protegê-lo?
Voltei para casa mais determinada do que nunca. Liguei à minha irmã Inês, que vivia em Coimbra.
— Catarina, não deixes que te pisem! O António queria que tu e o Tomás fossem felizes naquela casa. Luta por isso! — disse-me ela ao telefone.
As semanas passaram entre reuniões tensas e discussões familiares cada vez mais acesas. Teresa chegou ao ponto de me acusar de manipular o Tomás contra ela.
— És uma egoísta! Só pensas em ti! — gritou ela num domingo à tarde, quando veio buscar uns papéis do António.
— Eu só quero proteger o meu filho! — respondi-lhe, já sem conseguir conter as lágrimas.
O Tomás começou a ter pesadelos. Acordava a meio da noite a chorar pelo pai. Eu abraçava-o com força e prometia-lhe que tudo ia ficar bem — mesmo quando não acreditava nisso.
Um dia, ao chegar da escola, Tomás encontrou Teresa à porta de casa.
— Olá, querido! — disse ela com um sorriso forçado. — Queres vir passar uns dias comigo e com a avó?
Ele olhou para mim assustado. Agarrei-lhe na mão.
— Não hoje, Teresa. O Tomás tem trabalhos de casa para fazer.
Ela lançou-me um olhar gélido antes de se afastar.
Naquela noite percebi: estavam a tentar afastar-me do meu próprio filho. Senti um medo visceral como nunca antes. E se tentassem pedir a guarda dele? E se dissessem que eu não era capaz de cuidar dele sozinha?
Procurei ajuda junto da assistente social da escola. Contei-lhe tudo: as pressões da família, as ameaças veladas, os pesadelos do Tomás.
— Catarina, você é uma mãe dedicada. Não deixe que lhe tirem isso — disse-me ela com um sorriso encorajador.
A luta arrastou-se durante meses. Houve audiências no tribunal, lágrimas derramadas em corredores frios e noites em claro à espera de uma decisão. Mas nunca desisti. Por mim e pelo Tomás.
No final, consegui manter a casa e garantir que o Tomás ficava comigo. Teresa afastou-se lentamente das nossas vidas — talvez por vergonha ou por cansaço. Dona Amélia continuou a aparecer com bolos e rezas, mas já sem as insinuações cruéis.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que era antes do António partir: mais forte, mais dura talvez… mas também mais consciente do valor daquilo que realmente importa.
Às vezes pergunto-me: quantas famílias se destroem por causa de uma herança? Quantas mães lutam sozinhas pelos filhos sem ninguém saber? Se pudesse voltar atrás… teria feito tudo igual?